“Antonio Candido, Anotações Finais” revela os últimos pensamentos de uma mente lúcida

Bairrismo é uma coisa estranha, que me afeta – afetaria a todos nós? – de vez em quando. Venho de Poços de Caldas, cidade no sul de Minas Gerais. Cidade que votou em massa em Bolsonaro – disso não tenho orgulho. Mas também é a cidade que atravessou em muitos momentos a vida do grande intelectual Antonio Candido. Ele, que viveu quase um século, escreveu muito sobre Poços, onde morou e se desenvolveu intelectualmente quando jovem, no início dos anos 1930, e onde manteve por muitas décadas residência de veraneio. Pra cá trouxe não apenas sua amada Gilda e suas filhas, mas também a máquina de escrever que pertenceu a Sérgio Buarque de Holanda. E daqui levou recordações indeléveis. Prova disso são as citações da cidade e de naturais dela no documentário “Antonio Candido, Anotações Finais”, que parte dos dois últimos de 74 cadernos de reflexões escritos pelo crítico literário.

Antonio Candido começou a escrever nos cadernos aos 15 anos, seguindo conselho de sua mãe, Clarisse. Escreveu muitos, mas destruiu muitos também, no que chamou de “rompantes negativistas”. Interessam-nos os cadernos de número 89 e 90, escritos entre 2015 e 2017. Extremamente lúcido – chamando a situação do Brasil de então de “catastrófica”, sendo que não foi testemunha da piora generalizada dos anos seguintes, mas, prenunciando-os, chega a escrever “parece que caímos num buraco sem fundo” – Antonio majoritariamente reage a notícias de jornal e olha para trás.

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O homem que cultivava frutíferos silêncios com a esposa, Gilda de Mello e Souza, falecida em 2005, versa sobre iniquidade, política, antepassados, destino dos amigos de juventude e, claro, literatura. Mesmo com tanto assunto e com tantos feitos acumulados, ele alega que a ação mais importante de sua vida foi ter se casado com Gilda. Ela é um pensamento dominante, embora venha “em ritmos variados e variados estados de espírito”.

Mesmo sendo crítico literário, Antonio Candido não ficou imune a reações viscerais à literatura, que ele chama de “abalos”. Lista-os da seguinte maneira: quantos anos tinha, em que rua morava, qual obra lhe causou arrepios. De “Os Miseráveis” quando tinha apenas 13 anos ao então recém-publicado “Grande Sertão: Veredas”, são as obras que marcaram uma longa e rica vida.

Ocupam muitas páginas as opiniões de Antonio Candido sobre o golpe deferido ao governo Dilma. O crítico comenta como a “mentalidade de aldeia” é levada ao alto escalão político por um sistema eleitoral que, em algum momento que ele não conseguiu precisar, tornou-se dependente de grandes investimentos e por uma série de motivos virou um show de horrores, escancarado na votação do impeachment no plenário.

Não podiam faltar formulações sobre a velhice, em especial sobre um corpo que não responde tão bem como antes, mesmo a mente se mantendo ativa, ainda que com algumas limitações e lapsos. Antonio nos conta que não sai sem bengala, limitou seu raio de caminhada para no máximo uns seis quarteirões (!!), sente dores sobretudo nas pernas e sente a dissociação do “corpo” e do “eu”, algo que será solucionado com a morte.   

O passado foi sobretudo refúgio para Antonio Candido, e não somente em sua velhice extrema, como ele chama a fase da vida em que estava quando escreveu os cadernos. Ele conta que sua tia achava que ele deveria ter nascido no século XIX e ele próprio, na maturidade, escolheu consumir mais produtos artísticos do passado.

Como minha tia-avó Solange, que também viveu até os 98 anos, Antonio pensa que já tinha “ultrapassado a hora certa para morrer”. Minha tia-avó dizia que Deus havia se esquecido dela na Terra; o escritor é menos religioso ao botar em palavras o sentimento em comum. Acompanhamos seu “apagar da vida” através das anotações, escritas sem nenhum medo da morte. Ele não a desejava, mas ela não mais o preocupava.

Antonio Candido escreve em português, salpicando o texto de expressões em francês, alemão, latim e grego. Tudo é lido pelo narrador Matheus Nachtergaele, que sobre o trabalho de encontrar uma voz para o projeto comenta:

 “Foi um desafio bonito botar a voz em um projeto tão pessoal do Eduardo Escorel como esse de narrar os últimos diários de vida de um mestre revolucionário, mas sereno que é Antonio Candido. Era preciso uma melancolia, mas não uma tristeza. Era preciso uma paixão educada, como é o retratado. É um filme com a melancolia do fim de uma vida, mas com o otimismo de quem acredita no Brasil, ainda”.

Cada citação de Poços ou cada vislumbre da cidade nas fotos em preto e branco do acervo de Antonio causavam um pequeno frisson – nada equivalente aos abalos literários. O intelectual confessa achar que tem “certa disposição para privilegiar o passado” e é uma honra – algo que inclusive deveria ser mais divulgado e celebrado na cidade – saber que minha terra natal fez parte de um passado tão rico de uma personalidade tão importante para a arte brasileira.

Mais que um documentário, “Antonio Candido, Anotações Finais” é um presente de Eduardo Escorel, que bem poderia ter terminado a película com a dedicatória:

Antonio Candido, O.D.C. (Oferece. Dedica. Consagra.)

Trailer:

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