Com contos sobre o cotidiano, autora Úrsula Zufrieden estreia com obra que reflete sobre pertencimento e estrangeirismo em “Caso Fevereiro Dure Pra Sempre”.
Com a aproximação dos quarenta anos, Catarina, uma mulher bem-sucedida vê suas prioridades serem invertidas quando começa a sentir a pressão do relógio biológico para ter filhos. Percebendo a implacabilidade do tempo, ela inicia uma jornada incansável para alcançar seu novo objetivo: ser mãe. Mas será que seu desejo realmente é genuíno ou ela está sendo levada por pressão social? Este é um dos primeiros questionamentos que somos levados a investigar na obra de contos “Caso Fevereiro Dure Pra Sempre” (63 pág.), da escritora Úrsula Zufrieden, publicada pela editora Paraquedas. Partindo sempre de personagens complexos, muitas vezes solitários e em busca por conexões que ressignifiquem suas relações com o mundo e com eles mesmos, a autora vai tecendo uma obra que fala sobre a necessidade de pertencimento.
“Oxalá esta seja uma estrada sem volta. E se não for, será uma estrada
pontilhada como um jogo de ligar os pontos sem quaisquer danos morais.
Neste aparentemente interminável fevereiro de 2024, Úrsula abre seus
mundos e sorri em acolhimento pra quem quiser vir.”
Úrsula Zufrieden, escritora
Seus personagens estão sempre em uma busca incessante por algo, do profundo ao mundano. Seja afeto, acolhimento ou como pegar uma onda perfeita. Úrsula escreve sobre o desejo de pertencimento de seus personagens como se fosse o seu. “Escrevo o que pulsa, escrevo o que precisa sair, escrevo o que observo ao andar pelo mundo. Escrevo como psicografia para meus personagens. Eles habitam em mim e eu escrevo para lhes dizer que sim, que estou ali”, explica a autora.
Úrsula Zufrieden (lê-se “sufrida”, uma brincadeira com a palavra brasileira e nomes estrangeiros) é o pseudônimo de Caroline Costa, uma escritora multifacetada que usa a literatura como ferramenta para exorcizar a solidão de nunca achar que pertenceu a lugar algum. A autora gosta de ir e vir ao Brasil. Nascida em Recife (PE), a autora cresceu em João Pessoa (PB) e de lá explorou o mundo. Atualmente reside em Zurique, na Suíça alemã. A experiência de já ter vivido em vários lugares ao longo da vida influencia diretamente sua escrita. O ser nômade e a relação com sua terra natal são temas recorrentes em seus trabalhos.
Não apenas de forma literal, em que os personagens vivem fora do seu lugar de origem, mas também de forma figurada, como um sentimento universal de não-pertencimento, de estrangeirismo. Os personagens de Úrsula vivem entre-mundos. A relação com aquilo que é estrangeiro e com ser um estrangeiro, além do sentimento de um Brasil distante, são pontos encontrados em várias narrativas em “Caso Fevereiro Dure Pra Sempre”.
Influenciada por obras como “Grande Sertão: Veredas” e autores como Valter Hugo Mãe, Clarice Lispector e Juliana Leite, Úrsula define seu estilo como metafórico, leve e bem- humorado. Em “Caso Fevereiro Dure Pra Sempre”, estes elementos estão associados a histórias cotidianas, mas em que o comum se apresenta de forma desconfortável. É justamente nas estranhezas da vida que as relações vão se estabelecendo com maior profundidade. Como a história de uma psicóloga brasileira, que mora na Alemanha, e aos poucos vai se interessando pela vida de seus novos vizinhos no conto “Reversa” ou em “Amor perene, felicidade provisória” que acompanha a relação de cumplicidade entre Rauna, uma moradora de rua, e seu fiel companheiro, chamado Estácio.
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A autora também destrincha os diferentes sentimentos que submergem em situações mundanas, mas ao mesmo tempo, fantásticas. É o exemplo do dia a dia de um senhor no fim da vida que espera ansioso pela última visita de uma pessoa querida, em “O Entardecer do Percevejo”, ou a história de uma pesquisadora que dedica a sua existência em mapear o impacto das mudanças climáticas na rota de migração das baleias jubarte em “Megaptera novaeanglia”. A poética do sentir, do viver, do estar presente neste mundo.
Criando universos singulares, “Caso Fevereiro Dure Pra Sempre” é seu primeiro livro, fruto de dois anos de escrita intensa que ganhou força durante a pandemia. “A escrita sempre me surpreende porque me toca muito fundo. ‘Caso Fevereiro Dure Pra Sempre’ é um pontapé no meu perfeccionismo. Decidi um dia que o livro simplesmente precisava sair do útero porque estava ficando grande demais para carregar”, conta.
“Estácio preenchia na íntegra toda a essência do diferente. Talvez sua função na vida de Rauana fosse a de ser
seu anjo, seu intérprete, seu segurança, seu táxi, sua mobilidade social, sua ressurreição; uma espécie de super-
humano. Rejeitado, sozinho, incompreendido, engasgado, cheio de precipícios. Era a natureza livre de Estácio
que Rauana mais temia. Sofria por antecedência que ele rompesse a corda e fugisse. De novo por aí. De novo
sem certezas de coisa alguma. Se isso acontecesse, Rauana voltaria ao começo; seria decerto o golpe final nas mal-aventuradas tentativas de afeto.” Trecho de “Caso Fevereiro Dure Pra Sempre”.