Em janeiro de 2022, conheci Elena Ferrante, por meio de um clube do livro, do qual faço parte. Na época, lemos Um amor incômodo . Lembro, também, de que a leitura, de fato, foi incômoda, mas não vejo isso como um fator negativo, pelo contrário. O leitor, ocasionalmente, precisa passar por uma sensação de assombração, como se a obra tivesse te assustando, a cada virada de página. Naquele breve livro, comecei a sofrer, o que mais tarde descobriria ser, de febre Ferrante. Assisti ao filme A filha perdida (2021), li resenhas e mais resenhas sobre. Mais tarde, li o livro. Perdi o sono devido à história provocadora, mas por questões de rotina, tive de dar uma pausa na minha mais recente obsessão. Um ano depois, li A vida mentirosa dos adultos. Recordo que, ano passado, na saída do prédio da faculdade, enquanto estava comentando sobre as leituras atuais, uma amiga disse “você precisa ler a tetralogia”. Aqui estou, portanto, após meses “hospedada” em Nápoles, perseguindo Lenu e Lila.
Relações humanas é um tema vasto na literatura. Podemos citar amizades notórias, desde Homero, com Pátroclo e Aquiles, Pança e Quixote, de Miguel de Cervantes, Frodo e Sam, de Tolkien, Gatsby e Nick Carraway, de Fitzgerald, entre outros. Já na tetralogia, composta por A Amiga Genial, O Novo Nome, A História de Quem Vai e de Quem Fica e A História da Menina Perdida, conhecemos a peculiar amizade entre Rafaella Cerullo e Elena Greco, cujas vidas são entrelaçadas de modo intenso e muitas vezes conturbada. Essa relação estranha é vivida em um bairro pobre da cidade de Nápoles, após a Segunda Guerra Mundial e a política totalitária de Benito Mussolini. No primeiro livro, por exemplo, as personagens precisam lidar com as adversidades e os resquícios deixados pela guerra. A cidade italiana é um organismo vivo, uma vez que, acompanhamos, durante décadas, todas as transformações sociais, econômicas e urbanas do lugar. Assim, no decorrer da tetralogia, percebe-se as consequências quando um grupo de pessoas legitimiza o fascismo, mesmo que essa escolha tenha sido tomada há décadas atrás, e enterrá-lo, infelizmente, é uma tarefa árdua – aliás, é possível enterrá-lo?- Estou falando isso porque os acontecimentos do bairro napolitano e toda a conjectura do sul italiano são significativos para entender as escolhas tomadas pelas protagonistas, especialmente, quando se é uma mulher em um ambiente misógino, no qual a violência de gênero é enxergada como aspecto natural da dinâmica cotidiana:
Não tenho saudade de nossa infância cheia de violência. Acontecia nos de tudo, dentro e fora de casa, todos os dias, mas não me lembro jamais ter pensado que a vida que nos coubera fosse particularmente ruim. A vida era assim e ponto final […]
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Como disse anteriormente, o relacionamento de Lila e Lenu é, na melhor das hipóteses, singular. Deixem-me esclarecer melhor esse relacionamento. A tetralogia inicia-se com o “apagamento” de Lila: não há mais roupas no armário, nem objetos pessoais, inclusive, nas fotos, cortou sua figura. Ninguém sabe onde ela está. A mesma, segundo a narradora, a Lenu, nunca pensou em suicídio. A evaporação de Lila, vamos dizer assim, foi o que impulsionou a Lenu a começar a escrever sobre a história delas. Ligar o computador e digitalizar, para a Lenu, era um meio de “[…] ver quem ganha dessa vez.” (Ferrante, 2015, p.17) É perceptível o cenário competitivo entre ambas, porque espera-se, geralmente, que a amizade seja branda, sincera, mediada por carinho e amor. Até há, de certa forma, um amor mútuo, no entanto, o que se sobressai nesse vínculo são a rivalidade e a inveja, sentimentos os quais, não são verbalizados muitas vezes. É uma amizade crua, não utópica e, a partir dessa tensão, surge todo o movimento narrativo. Ferrante não propõe soluções. Ao invés de respostas, há questionamentos, dessa forma, deixa seu leitor em estado profundo de reflexão acerca dos relacionamentos interpessoais. Digo, ainda, que a autora consegue elaborar muito bem as angústias das personagens. Fabiana Secches diz que as histórias de Elena Ferrante “[…] capturam e sustentam a obscuridade das relações humanas […]” (2020, p.70) Destaco, aqui, um trecho do primeiro livro que explicita a turbulenta amizade:
Algo me convenceu, então, de que se eu caminhasse sempre atrás dela seguindo sua marcha, o passo de minha mãe, que entrara em minha mente e não saíra mais, por fim deixaria de me ameaçar. Decidi que deveria regular-me de acordo com aquela menina e nunca perdê-la de vista, ainda que me aborrecesse e me escorraçasse.
Conforme as meninas vão crescendo – uma sendo a sombra da outra- o Vesúvio, o mesmo vulcão que destruiu a antiga cidade de Pompeia, é uma metáfora para as forças incontroláveis que impactam suas vidas. À medida que amadurecem, o mal estar também aumenta, as vielas, as ruas descuidadas e perigosas, junto com toda a cólera habitual faz com que, o próprio leitor sinta que a qualquer momento, o vulcão adormecido entrará em erupção. Afinal, “como era possível resistir naquele lugar de desordem e de perigo, na periferia, no centro nas colinas, sob o Vesúvio?” Questiona Lenu, no segundo livro. A amizade não convencional de Lila e Lenu, segundo Secches, “[…] funciona como um exílio em que se refugiam de uma realidade opressora. A imaginação contra os limites do bairro, a literatura contra a violência.” (2020, p.70) Os livros farão parte do percurso das meninas, especialmente Mulherzinhas, de Louisa May Alcott.:
Assim que nos vimos proprietárias do livro, começamos a nos encontrar no pátio no pátio para lê-lo, em silêncio ou em voz alta. Durante meses o lemos, e tantas vezes que o livro ficou sujo, desconjuntado, perdeu a lombada, começou a desfiar, a desfazer-se em cadernos. Mas era o nosso livro, e o amamos muito.
A fim de saírem da opressão e da pobreza extrema do bairro, as duas garotas juraram que escreveriam livros – vale ressaltar que Louisa May Alcott enriqueceu com a publicação de Mulherzinhas– Mas enquanto Lenu busca pela validação acadêmica e, mais tarde, pela escrita , Lila se destaca pela sua inteligência crua e rebeldia. Essa diferença cria uma tensão constante, na qual cada uma tenta entender e superar as limitações impostas pelo ambiente social. A competição implícita que paira sobre ambas gera sentimentos ambíguos, no entanto, “quem seria Elena sem que a Lila a desafiasse? E quem seria Lila, do mesmo modo, sem que Elena a narrasse?” ( Secches, 2020, p. 70) Enquanto Lenu segue o caminho literário e universitário, longe de Nápoles, Lila ainda permanece na periferia, e enfrenta adversidades da vida pessoal, seguindo o legado de outras mulheres do bairro. Além disso, a tetralogia expõe a situação feminina e a busca pela autonomia em um contexto hostil e patriarcal, o que acaba afetando, também, o vínculo de Elena e Lila. Certamente, em uma sociedade na qual o homem é o centro de tudo, elas enfrentam empecilhos. Saliento, aqui, a situação de Lenu, que se torna uma mulher escritora: dividir-se entre tarefas domésticas enquanto tem um prazo apertado para entregar um texto ou quando sente necessidade intensa de datilografar um tema o qual está incessante em sua mente, mas a vida, simplesmente não permite, porque você não está suprindo a expectativa do gênero. Em uma entrevista , ao ser questionada sobre suas personagens escritoras, Ferrante diz:
As mulheres escrevem muito, e não tanto por profissão, mas por necessidade. Recorrem à escrita sobretudo em momentos de crise, e o fazem para se explicarem a si mesmas. Há muitas coisas de nós que não foram contadas até o fundo ou que simplesmente não foram contadas, e acabamos descobrindo isso quando a vida de cada dia se turva e sentimos necessidade de pôr ordem.
Eu, por exemplo, terminei a tetralogia nesta semana e senti muita vontade de escrever sobre ela, porque quando fechei o livro, senti a demanda de colocar a incrível história de Ferrante em ordem. Encontrei-me com a famosa eletricidade nos dedos, por isso, peço licença a Virgínia Woolf para usar as palavras dela: enquanto escrevo este texto, enquanto aperto as teclas, imaginem-me em estado de transe. Eu diria que a saga das personagens napolitanas deixaram-me hipnotizada. Além disso, seria uma forma de ainda manter por perto a Lenu e a Lila. Disse acima que a Tetralogia Napolitana é hipnótica, isso também se deve a escrita de Elena Ferrante. Questionado sobre os desafios de se traduzir a obra, Marcello Lino, tradutor de outro livro da autora, comenta sobre a forma de escrever da escritora italiana: “Ela tem essa escrita límpida, mas que, de repente, nos surpreende com uma frase estranha, que causa um estranhamento mesmo.”
Tentei dar um breve panorama sobre a Tetralogia Napolitana, visto que os livros são colchas de retalhos, um texto muito bem tecido pela autora, com muitos mistérios escondidos pelos becos napolitanos. Não se assuste, se no meio da leitura, você se sentir desconfortável, ou se sentir andando em um pantano, ou, até mesmo, se sentir subindo o vulcão da cidade. Pela minha experiência, parece que a autora quer que nos sintamos assim: à beira do Vesúvio, com certo receio de que ele acorde após anos.
Sobre a autora
Elena Ferrante é o pseudônimo de uma autora italiana, festejada pelo mundo afora como uma das mais belas prosas contemporâneas. Elena nunca mostrou o rosto, nem sequer deu alguma pista de sua verdadeira identidade. Nas raríssimas entrevistas que concede, em sua maioria por email, costuma dizer que já fez “tudo que podia ter feito por seus livros escrevendo-os”. Nesse mistério, entretanto, restam certezas muito límpidas: a força gigantesca de sua prosa, a recusa do artificialismo da linguagem, a aproximação com a consciência profunda de suas personagens e a sua honestidade brutal.
Editora : Biblioteca Azul / Tradutor: Maurício Santana Dias
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