A cor púrpura é a cor mais quente!

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Eu sou uma crítica ferrenha de adaptações de livros, mas é possível, que até mesmo Alice Walker quando publicou seu livro “A cor púrpura”, em 1982, não esperava que Steven Spielberg iria dirigir uma adaptação tão boa quanto àquela lançada em 1985 (quero ressaltar que não assisti o musical lançado em 2023). 

Começo esta resenha falando da adaptação de “A cor púrpura”, porque foi na adaptação que eu consegui captar a energia que eu esperava sentir ao ler as cartas da narradora Celie na obra escrita. Uma história fantástica que dispensa comentários, dada a audaciosa proposta da autora, que rompe as barreiras da escrita atravessada pelo recorte de gênero e de raça e denuncia as atrocidades vivenciadas pelas mulheres, que foram vítimas de um regime escravocrata e de seus senhores, e continuaram a sofrer pelas mãos de seus companheiros, posteriormente.

Um pouco da história

Mulheres que lutaram bravamente por sua liberdade, pois se reconheceram mais fortes, descobrindo que poderiam contar umas com as outras, formando uma rede de apoio que alcançava a vizinhança e inclusive atravessou o oceano. Mulheres desumanizadas e silenciadas pelo simples fato de existir, algo muito bem colocado pela autora, que vivenciou na realidade o contexto da segregação racial nos EUA.

Quanto à “energia” que digo ter experimentado na adaptação do cinema, me refiro ao modo como a narradora protagonista se manifesta contra seu algoz e como ela consegue se libertar e libertar suas companheiras com a sua determinação. No livro aconteceram mudanças, mas considero pacíficas demais, tranquilas demais. Faltou um tanto de insubmissão e desobediência.

A cor mais quente é a cor púrpura!

Mas, o ponto chave da leitura para mim não se trata do sofrimento e da luta de Celie e de suas amigas-irmãs, mas como ela é apresentada ao amor de uma forma tão doce e nada convencional, afinal, a cor mais quente é a cor púrpura. Celie desabrocha em si a paixão depois que conhece Shug Avery, mulher para além do seu tempo, que criou asas bem cedo para viver sua vida como bem entendeu. Esse encontro extasiante é que permite a nossa narradora perceber que o sexo ia para além de deitar-se e deixar que o homem se refastelasse, deitasse ao lado e dormisse ao fim.

Descobrir um amor não violento e que fugia completamente aos padrões sociais da época também me chamou a atenção não porque considero o romantismo o ponto chave, mas porque aquele amor a fazia livre de amarras heteronormativas que insistem em moldar relacionamentos ainda nos dias atuais.

Gosto de pensar que Alice Walker, colocou naquele encontro um sentido que atravessa o tempo e o estabelecimento de relacionamentos amorosos. Quando Celie encontra Shug, ela também se encontra, se vislumbra e consegue descobrir para si mesma uma vida diferente daquela que lhe impuseram violentamente.

Descobriu uma força que permaneceu adormecida e foi sustentada durante anos pela ideia de rever os filhos decorrentes de uma violência sexual sofrida. Posteriormente, mantida pela descoberta das cartas escritas pela irmã Nettie, até que descobre no toque de outra mulher, uma potência de vida, que ela mesma não fazia ideia da existência. É com Shug, que a todos enfeitiçava, que Celie, reconhece sua própria força.

O livro é uma mensagem nada sutil sobre a potência feminina quando mulheres se unem e se apoiam. Como nós podemos ser imparáveis e totalmente incríveis quando contamos umas com as outras. E que a rivalidade não nos mantém fortes, mas nos desestabiliza, permitindo que o sistema patriarcal no qual estamos inseridas se conserve e permaneça nos oprimindo e violentando; nos silenciando e apagando nossas histórias.

A cor púrpura é a cor mais quente e sem dúvida nos conduz para outras leituras de mundo possíveis, longe da submissão e da ideia de que não podemos, não iremos conseguir. Não temos ideia do quanto a força de mulheres unidas pode nos levar para lugares inimagináveis.

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