Se você já for leitor de Tolstói, possivelmente estranhará Felicidade Conjugal, obra escrita pelo autor em 1859. Agora, se ainda não teve contato com o escritor russo, penso que a novela será um bom livro introdutório para a vasta produção bibliográfica dele. Permitam-me explicar melhor a primeira observação. Conforme o tradutor Boris Schnaiderman, que também assina o posfácio da edição da Editora 34, o livro “[…] pode surpreender o leitor acostumado com a pregação insistente por Tolstói de seu sistema ético-religioso.” Para o pesquisador Samuel Titan Jr, que assina a orelha da publicação, há certas frases que não esperaríamos do autor de Guerra e Paz, como, por exemplo: “É tão bom viver no mundo!” Apesar de presenças sutis de crítica social, Tolstói, aqui, não se debruça sobre questões camponesas, nem sobre a desigualdade da Rússia czarista. Pelo contrário, ele concentra-se em narrar os pensamentos e sentimentos de uma jovem aristocrata, debruçando-se acerca da subjetividade da moça.
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A novela é narrada sob o ponto de vista da Maria Aleksandrovna, uma menina de dezessete anos, que acaba de ficar órfã, herdeira de uma extensa propriedade rural, que, paulatinamente, encanta-se por um homem mais velho, o Serguéi Mikháilitch, um velho amigo de seu pai. O início do relacionamento é marcado por expectativas românticas e a felicidade é facilmente alcançada.
“A sua cabeça destacava-se sobre o fundo da noite, que se tornava mais claro. Ele estava sentado com a cabeça apoiada nas mãos e fitava-me fixamente, os olhos brilhando. Sorri vendo esse olhar, e parei de tocar. Ele sorriu também e meneou com a censura a cabeça, na direção dos cadernos de música, indicando-me que continuasse a tocar.” (Tolstoi, 2010, p.36)
No entanto, o romance após o casamento muda. O casal não compartilha mais os mesmos desejo. Mária, que antes via em Serguéi um guia e protetor, começa a sentir-se sufocada pelas limitações impostas pela vida conjugal e pela personalidade controladora de seu marido. A felicidade conjugal, que parecia garantida no início, se transforma em uma série de desilusões e frustrações. A transição de Mária, de uma jovem apaixonada para uma mulher consciente de suas próprias necessidades e insatisfações, é central para a narrativa. Para esse dilema matrimonial, Tolstói não apresenta soluções, uma vez que a situação é complexa, com muitas nuances, e muitas vezes ambíguas
“Havia entre nós como que uma ofensa não perdoada, era como se ele me castigasse por algo e fingisse não o perceber.”( Tolstói, 2010, p. 102)
Lembro-me das palavras de Ítalo Calvino, em seu livro Por que ler os Clássicos? O italiano diz que “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” Essa é a sensação que tive assim que terminei o livro. Há mais questionamentos do que respostas: até que ponto as expectativas e idealizações de Mária sobre o amor e o casamento influenciam sua desilusão ao longo da história, e como essa experiência reflete as tensões entre realidade e idealismo nas relações humanas? Na futura releitura, haverá novas perguntas que me intrigarão pelo resto de minha semana. Mesmo que Felicidade Conjugal seja uma obra escrita pelo jovem e iniciante Tolstói, há camadas de complexidade nas relações humanas e nas expectativas em relação ao casamento. É perceptível, nesta breve obra, a potência literária que o russo assumiria pelas próximas décadas.
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