“Todas as minhas mortes”, de Paula Klien: a história de um corpo


Livro de estreia da renomada artista visual carioca Paula Klien, Todas as minhas mortes (Editora Citadel, 176 páginas) é um romance que mescla elementos ficcionais e biográficos, tratando, de forma intimista e impactante, a relação de uma mulher com o próprio corpo.

A protagonista da obra, Laví, tem seu nome inspirado na expressão “la vie”, que significa “a vida” em francês. Este detalhe, em contraste com o título, Todas as minhas mortes, revela a sagacidade da autora em sua intenção. Klien é visceral e provocativa, o que se percebe logo nos primeiros capítulos do livro, que cobrem a infância e a adolescência da personagem a partir de um fio inusitado – a sexualidade – como se vê no parágrafo que inicia a obra (p. 15):

“Toco siririca desde que me entendo por gente. Nunca pensei que fosse falar sobre isso. Não é bonito como tocar piano. Essa ficha me caiu ainda pequena – bem pequena – quando ouvia da minha babá: ‘Vou contar pra sua mãe, hein?’, ameaçava ela com uma verruga no rosto, toda vez que me dava um flagrante. No espelho, eu era um monstro. Que se dane ser um monstro! Minha necessidade de resolver aquele tesão era maior que qualquer monstro.”

Este trecho, que pode até chocar um leitor desprevenido, assume o desejo infantil de forma impactante, mostrando a força da escrita de Klien, que é crua e, ao mesmo tempo, poética. Afinal, a narradora já inicia sua história contando algo íntimo, mas não como quem confidencia um segredo e, sim, de forma descontraída e impessoal.

Mas também há algo de poético em Todas as minhas mortes. No trecho inicial, Laví afirma enxergar-se no espelho como um monstro para, em seguida, dizer: “Que se dane ser um monstro! Minha necessidade de resolver aquele tesão era maior que qualquer monstro.”, denotando a relação paradoxal que a personagem mantém consigo mesma, postulada entre vida e morte, prazer e monstruosidade.

Este aspecto é aprofundado na fase adulta da protagonista, que vivencia múltiplos fracassos na tentativa de ter um filho. Os abortos, aqui, são narrados de maneira franca e desoladora, assumindo um lugar de morte (daí, o título) de Laví (que deseja, mais do que tudo, a Vida). A maternidade, para ela, é um objetivo insaciável, se vê no trecho do capítulo 6: “Eu estava obcecada. Passava metade do tempo pensando em ser mãe e a outra metade também” (p. 103). Desta forma, Klien cria um laço com o leitor, que passa a torcer pela personagem durante grande parte da obra.

Ao longo de Todas as minhas mortes, a autora costura elementos culturais e subjetivos, concebendo uma personagem complexa, que não encara o corpo de maneira convencional, mas com vigor. O desejo de ser mãe, percebe-se, não advém de uma obrigação social patriarcal, mas do desejo de retomar as rédeas do próprio corpo, como em sua infância. Em determinado momento, por exemplo, Laví torna-se madrasta de duas meninas, mas assume que esta relação só evidencia um vazio em relação à maternidade.

Nesta história, a personagem consegue tornar-se mãe, o que, de forma alguma, configura um final. Na verdade, Klien desdobra a narrativa de forma reflexiva, colocando em perspectiva corpo e a capacidade reprodutiva da mulher ao longo de seu envelhecimento.

Todas as minhas mortes, portanto, acompanha a história de uma mulher e seu corpo expondo o quão complexa é esta experiência. Neste livro, Klien concebe uma escrita corajosa e singular, capaz de tocar o leitor numa linguagem simples, mas tocante. Em um momento em que a reivindicação das mulheres pelo direito ao corpo vem se tornando uma pauta mais importante, uma narrativa que carrega este assunto como víscera é mais do que necessário.

*Laura Redfern Navarro (2000) é poeta e jornalista. Graduada pela Faculdade Cásper Líbero (FCL) pesquisa corpo, linguagem e liminaridade. Foi vencedora do ProAC em 2022 com o projeto “O Corpo de Laura”, que consiste em um livro e uma plaquete.

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