“Elena sabe”: um retrato sobre o luto e a perda do controle do próprio corpo

20240711_113427

Os profissionais de enfermagem e cuidados são herois anônimos da sociedade, dedicados a ajudar pessoas vulneráveis — especialmente aquelas que necessitam de cuidados paliativos. Contudo, o anonimato não se trata apenas da falta de visibilidade. Embora o papel dos cuidadores seja crucial, eles recebem remuneração insuficiente — ao contrário de parentes que cuidam de seus entes queridos sem receber nada em troca, sujeitos ao impacto negativo na saúde mental. “Elena sabe”: um livro que enfatiza doença e cuidado, relação mãe-filha, dogmas religiosos, preceitos sociais que desumanizam pessoas com deficiência e o direito feminino de ter autonomia para decidir o que acontece com o próprio corpo.

(…) seu corpo surdo está cercado por outros surdos, pensa, mais surdos que seus pés quando não andam. Surdos que dizem entendê-la mesmo sem a escutar, Elena sabe.”

O romance policial “Elena Sabe”, de Claudia Piñeiro, conta uma história que nos emociona profundamente do começo ao fim. A protagonista, Elena, uma mulher de 62 anos, acometida pela doença de Parkinson, torna-se uma investigadora inusitada no suposto assassinato de sua filha Rita (que a polícia considerou suicídio) enquanto gerencia os sintomas debilitantes de sua doença. 

O livro foi publicado em outubro de 2007, tem 157 páginas e está dividido em três capítulos: “Manhã”, “Tarde” e “Noite”, referentes aos comprimidos que Elena tomou ao iniciar sua jornada para encontrar Isabel, uma coadjuvante que Elena revela ter sido “salva” por Rita 20 anos antes do incidente. No pensamento da protagonista, Isabel é a única que, sendo levada pelo sentimento de dívida com a intervenção feita no passado, pode ajudá-la a solucionar o decesso de Rita.

Apesar os personagens que circundam a história — o policial, o namorado de Rita e o padre — considerarem a morte de Rita como suicídio, a mãe acredita veementemente em insights que indicam que ela não teria atentado contra a própria vida. Entretanto, como a polícia cessou a investigação, Elena, ainda que desvigorosa pelo Parkinson, não desiste de tentar encontrar respostas para o trágico e súbito óbito da filha de quarenta e poucos anos 

Os comprimidos que marcam o tempo da narrativa permitem à portadora da deficiência curtos períodos de mobilidade, e a trama intercala entre a busca presente de Elena e seus desafios causados pelo Parkinson, assim como flashbacks de memórias de sua filha. Esses flashbacks revelam que, antes mesmo de Elena ser diagnosticada e Rita se tornar sua cuidadora de forma forçada, elas não sustentavam uma boa relação; trocavam farpas rudes e brigavam com frequência.

“O que se é quando o seu braço não se move para vestir uma jaqueta, ou sua perna não se levanta no ar disposta a dar um passo, ou seu pescoço não se ergue impedindo-o de andar encarando o mundo? Quando não se tem um rosto disposto a enfrentar o mundo, o que se é?”

Embora não haja muitos eventos — Elena precisa atravessar a capital argentina —, a autora nos proporciona uma imersão crua que nos mantém enclausurados do início ao fim da história, brincando com nossas expectativas, pondo-nos atrelados às dificuldades de Elena, e além disso, apresentando aspectos sociais importantes para refletir: etarismo, preconceito contra pessoas com deficiência, invisibilidade social, fanatismo religioso e falta de autonomia das mulheres sobre seus corpos. À medida que os detalhes se revelam lentamente, há uma sensação de ferocidade que realmente comove o leitor.

Acometido pelos pensamentos e limitações de Elena, a primeira impressão que o leitor tem desta personagem é a de rudeza e impulsividade. Entretanto, fica comovido ao notar que o mundo e a sociedade não parecem ser para aqueles que têm mobilidade limitada e ainda sofrem com os olhos hostis da sociedade. Quando quem lê percebe que é apenas uma casca, uma armadura para se defender da fatídica realidade, é coagido a desabar com Elena enquanto ela chora por ter sido bem tratada apenas uma única vez.

“As memórias dos detalhes, Elena sabe, é só para os valentes, e não se escolhe ser covarde ou valente.

O título do livro é repetido com frequência ao longo dos acontecimentos, o que pode ser irônico, pois, ao final da história, há uma reviravolta inesperada até para o leitor. Elena percebe que, na verdade, não sabe. É um livro ousado e direto que lança olhares sobre diversas causas que a sociedade teima em tentar varrer para debaixo do tapete. Claudia Pinero, em sua genialidade, promove um desconforto necessário para remover a venda dos olhos e cravar empatia à consciência de quem lê.

“Elena sabe” está disponível para venda no site da editora Morro Branco, na Amazon e também como um longa-metragem na Netflix:

Related posts

“O Voo das Libélulas e outros contos inflamáveis”, de Kênia Marangão: quando o fantástico encontra o mais brutal da realidade

Projeto ‘Uma nova história’ incentiva o hábito de leitura no DEGASE

O gótico contemporâneo de Lúcio Reis Filho em “Lupedan: um mundo chamado Ego”