“Por trás dos meus cabelos”, de Miriam Squeo: romance sáfico retrata os caminhos da autoaceitação e do autoconhecimento pessoal e sexual

“Todos devemos deixar a vida nos surpreender. Esta é a magia. Nunca sabemos quando, o quê, o porquê. Só podemos saber como nos sentimos.”

Escolhi abrir a resenha com essa citação de “Por trás dos meus cabelos”, publicado pela Editora Autografia, em 2023,  visto que o livro da Miriam é exatamente um convite a essa exploração da vida e do mundo, a essa autopermissão. Chamo de Miriam, pois ela escreve de um jeito tão descontraído, tão à vontade, tão próximo, que é fácil sentir que nós, leitores, estamos sentados em um bar bebericando algo enquanto ela nos tem como confidentes. Porém, ela deixa espaço para imaginarmos o que é realidade e o que é fantasia em uma história que acima de uma biografia, e sem cair na autoajuda, promove uma narrativa que conecta e inspira.

Dividido em seis partes, o livro traz um misto de ficção e memória da autora enquanto se descobria uma mulher LGBTQI+. A relação da narradora com os pais, as dúvidas já na vida adulta, a troca do medo pela coragem, os primeiros relacionamentos, bons e ruins, com mulheres, e também a forma como ela, hoje, encara a vida. 

Nossa narradora, assim como Miriam, é italiana de nascimento e brasileira de coração. Nasceu em uma família de origem humilde, no interior do sul da Itália, em 1986, e teve uma educação bastante dura, mas com pais que estavam dispostos a dar aos filhos aquilo que eles não tiveram: oportunidades. Porém, muitas vezes o que crianças querem e precisam é atenção, amor, colo, algo que nem sempre pais nessa situação de luta diária conseguem proporcionar, alguns nem tem ferramentas para isso, como parecia ser o caso do pai. 

Crescendo nesse meio no qual o cuidado muitas vezes era mais material que emocional, conflitos eram constantes, assim como a sensação de desamparo e solidão.  Mesmo tendo na mãe um guia a seguir, uma inspiração de luta e ambição, foi em um professor misto orientador e paixonite platônica que a narradora encontrou aquele ombro amigo e uma alma com a qual partilhava o amor pelas palavras, pela poesia.

A poesia funcionando não só como forma de expressão, mas principalmente como um ponto de encontro consigo mesma. 

“Me leva

Para uma ilha de um mar limpíssimo

Para que, assim, eu possa de afundar na imensidade transparente.

Me leva onde o sol  e a lua resplandecem em nuvens

Onde a noite espera silenciosa

Até os nossos olhos se fecharem

Me leva para longe das paredes e dos barulhos

Naquelas praias onde a música evapora da areia

E nunca para

Me leva

Para eu andar nas estrelas

Mais alto, sem limites, sem medo.

Deixe-me sentir uma forte vertigem

Deixe-me sonhar.”

E mesmo querendo alguém para lhe resgatar, como muitas adolescentes em busca do príncipe encantado, no fim, foi a própria narradora que salvou a si mesma de um lugar no qual ela não cabia mais. Não que ela tenha virado às costas a família, amigos e até a um amor daqueles em que um termina a frase do outro, só que o porto seguro vira prisão quando deixamos de ser nós mesmos para poder atracar.

Deixando o sul da Itália para trás, Milão foi o primeiro de muitos destinos e onde ela parece ter olhado para dentro com mais atenção, ainda que em meio a tantos estímulos, ou quem sabe até em razão deles. Novos ambientes, novas pessoas, novas possibilidades.  

Todo esse processo de descobertas e autoconhecimento é o que acompanhamos ao longo da maior parte do livro. Seja em Milão, Paris, Rio de Janeiro, Bahia ou Pernambuco, temos nossa narradora se redescobrindo diante do que o mundo tinha a oferecer. 

E o mundo, ou melhor, Lea, uma colega de trabalho, tinha algo muito específico a ofertar, um beijo cuja primeira reação foi a fuga, pois como a própria autora coloca:

“Até aquele momento nunca pensei em beijar mulheres e, com exceção de Lea, que eu sabia ter tido uma experiência com uma amiga, não conhecia nenhuma mulher que gostasse de mulher. Até porque, sinceramente, naquela época a Itália não era muito aberta, e eu, sendo do interior, tinha muito menos contato com pessoas LGBTQI+ assumidas.”

Porém, algo mudou e os olhares e toques trocados com Lea passaram a carregar uma eletricidade, uma tensão sexual que inevitavelmente explodiu em um beijo daqueles que tiram a pessoa do eixo. Algo acordou dentro dela e externamente os sinais começavam a aparecer. Os cabelos, antes mantidos lisos, desprendiam-se em ondas e uma nova sensualidade surgia, mas tudo ainda envolto em muitas dúvidas e incertezas. Ainda soava errado, proibido. 

Uma coisa, entretanto, estava certa: “o caminho que até aquele momento eu achava que era linear, assumia curvas e um mundo de possibilidades fervilhava a minha frente.” 

Com Lea no passado e trabalhando em terras parisienses, ela começou a se abrir ainda mais, a conhecer outras mulheres, explorar essa sexualidade até então contida e a América Latina fez o resto. Com Martin e Thais, do Brasil e do Caribe, respectivamente, veio a viagem para passar o Carnaval no Rio de Janeiro. Um caminho sem volta.

 Sabe quando viajamos a um lugar e nos apaixonamos tanto que começamos a ver quanto custa um terreno? O deslumbramento com a cidade, a energia, as pessoas, fez exatamente isso com a narradora, mas decidida, ela não deixou só no plano do desejo.  A mudança para o Brasil veio e a fluência em português nos trouxe até aqui. 

O livro é narrado toda em primeira pessoa, o que reforça a dúvida entre o que é Miriam e o que é personagem, porém a narradora abre sua alma em um texto marcado pelo tom casual. Há, sim, uma atenção à norma, inclusive em algumas falas, como por exemplo, “Perdoe-me“, “Passe-me o seu Instagram“, mas que de nada atrapalham a fluidez do texto. 

A história caminha alternando a narração com diálogos e reproduções de mensagens que também movem a trama. Miriam sempre dando enfoque ao que agrega à história que ela quer contar, a história de como através de viagens, encontros e desencontros ossa narradora se reinventou e se reencontrou como mulher. Os recortes do passado são bem selecionados nesse sentido. A sensação de que estamos em uma conversa impera o livro todo, não se perdendo por um apego aqui ou ali à norma. É, no geral, uma narrativa muito fluída.  

Na verdade, é um feito e tanto escrever um livro em um tom tão pessoal em uma língua que não seja a materna. Isso exige uma conexão emocional muito grande com essa outra língua que nitidamente ela tomou para si. 

Falando em emocional, entramos em uma torrente de sensações enquanto ela entrava e saia dos relacionamentos. É um momento de redescoberta de si enquanto mulher LGBTQI+, e sendo ela uma pessoa tão intensa, tudo também era muito intenso. Muita entrega, pele com pele e beijos famintos. 

“Chegamos em casa tirando a roupa e jogando tudo no chão. A nossa paixão começou no chuveiro quente, com beijos molhados de água e de vontade. Exploramos os nossos corpos, nos demos um prazer intenso. Depois nos deitamos na cama e conversamos sobre a vida, e essa era a coisa mais familiar do mundo, mesmo tendo acabado de acontecer.”

Ela, totalmente coração, e nas próprias palavras: “a mesma intensidade que te leva aos céus, também te arremessa ao chão, em um piscar de olhos”. E em uma dessas relações ela foi do céu ao inferno. Entre inúmeros altos e baixos, foi-se criando uma relação de dependência tão forte que mesmo diante do desequilíbrio latente entre elas, ela não deixava ir, não conseguia ir. É bem agoniante ver de forma tão íntima o relato de uma pessoa que entra nessa espiral tóxica. 

“Tóxico é aquele amor que te coloca uma energia pesada na pele, que te tira a paz, que mexe como seu sono, com a sua autoestima e sua estabilidade. Tóxico é tudo o que, em vez de desejar e proporcionar o bem, faz tudo para te deixar mal. Tóxico é quando você se coloca tanto em discussão que até arrisca se perder.”

Leia também: O dia em que Clarice Lispector entrevistou Chico Buarque

Ela, de fato, se perdeu de si. Uma mulher independente, com uma carreira sólida, que já tinha mudado de país, enfrentado problemas sérios de saúde, que já havia lutado tanto, principalmente para ser quem ela realmente era, estava sufocando a si mesma em uma relação sem paz. O contrário do que tão sabiamente já dizia Cazuza: “Eu quero a sorte de um amor tranquilo.” 

Para quem está de fora, as coisas parecem sempre claras, mas só quem vive sabe realmente como é difícil e doloroso se libertar, mas é preciso, foi preciso.

Após a tormenta, enfim, veio a reconstrução e lá estávamos nós, leitores, acompanhando esse processo de cura e de reconexão. A tristeza faz parte da vida, mas ela não pode ser a vida. Isso ficou muito claro no texto, além da máxima de que se custa a nossa paz, é caro demais. 

“Por trás dos meus cabelos” é uma história LGBTQI+ de encontros e desencontros, uma história de autoaceitação e autoconhecimento, pessoal e sexual. Uma ode a si mesma, mas também ao caminho percorrido até aqui, na vida e no texto, pois dele nasceu, não só nossa narradora, mas também Miriam Squeo como escritora.

Sobre a autora:

Nascida no sul da Itália em 1986, mas de alma brasileira, Miriam Squeo é graduada em Administração de Empresas pela prestigiada Bocconi University. Desde o início de sua trajetória profissional, ela desempenhou vários cargos de liderança na área de Marketing do grupo L’oreal. Além do Brasil, ela também acumula passagens pelos escritórios da empresa em Milão e em Paris aonde atualmente trabalha como Vice Presidente de Marketing. Desde adolescente, Miriam sempre nutriu grande paixão por literatura e pela escrita. No ano passado a autora publicou o seu romance inaugural “Por trás dos meus cabelos”, um romance de descoberta sexual na idade adulta e de reflexão sobre as diferentes formas do amor e sobre amor próprio.

Compre o livro aqui!

Related posts

‘Democracia canibal’, de Zita Nunes, explora a formação identitária nas Américas

“Nácar Madrigais”, de Adriana Oliveira, une amor, poesia e música

Lucas Der Leyweer, autor rondoniense de “Vivências de peles negras” retrata na poesia as “peles cansadas”