“Compaixão” de Anne Sexton: a poesia que confessa e ensina a lidar com a dor

Como lidar com a dor? Como lidar com questões de saúde mental? A poeta Anne Sexton, aconselhada pelo médico, começou a escrever versos a fim de organizar os sentimentos e, por meio da escrita, dar forma a sua enfermidade abstrata. Anne Sexton seguiu o conselho. Mais tarde, passou seus dias martelando os dedos na máquina de escrever e, quando menos percebeu, folhas e mais folhas de poemas estavam em cima de sua mesa.

Ela, infelizmente, não resistiu aos transtornos mentais, mas seu médico acredita que o ato de escrever ajudou a suportar o fardo, prolongando um pouco mais a sua vida. A editora Relicário oferece, pela primeira vez, no Brasil, uma antologia bilíngue de Anne Sexton. É possível, agora, por meio das traduções da poeta Bruna Beber, conhecer o que estava escrito nos inúmeros papéis que Sexton datilografou. Organizado pela filha da escritora, Linda Grey Sexton, o livro reúne, além dos poemas publicados em vida pela autora, uma série de publicações póstumas.

Em relação ao seu estilo poético, sua poesia é caracterizada pelo caráter confessional, ou seja, uma poesia que está “[…] estreitamente ligada à intimidade de seu autor ou autora – e, para os padrões da época, imprudente sem remorso algum.” O confessionalismo, portanto, lida com  vivências humanas comuns a todos a fim de manifestar o poético. Mais tarde, no entanto, Sexton recusará essa alcunha, uma vez que a considerava reducionista.

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Mesmo assim, ela e outros poetas da época, incluindo Sylvia Plath, mudaram os rumos da poesia norte-americana, utilizando um eu-lírico que usufrui de elementos autobiográficos a fim de construir a base de seus versos. Vencedora do prêmio Pulitzer de poesia em 1967, Sexton fez de sua vida íntima e todos os sentimentos turbulentos o cerne de sua arte:

No entanto

segui em frente

típica afirmação humana,

me arrastando como se

meu corpo fosse um cotoco

no porta-malas, um baú de viagem.

tudo isso virou um perjúrio da alma.

virou mentira deslavada

e embora eu vestisse esse corpo

ele permanecia nu, e morto.

 (Sexton, 2023, p.109)

O estilo de Sexton é ao mesmo tempo lírico e brutal. Esses versos, por exemplo, demonstram uma batalha mental dolorosa, uma linha tênue entre resiliência e desespero. Sua linguagem é carregada de imagens intensas e metáforas ousadas, principalmente se considerarmos a época em que suas obras foram escritas. Ela tem a habilidade de transformar o ordinário em extraordinário e o familiar em algo profundamente inquietante. Sua filha, Linda Grey Sexton, que organizou a obra, diz que Sexton aborda os temas com “ardor, fúria e, ao mesmo tempo, uma clareza contundente.”

Com o objetivo de inovar sua poesia e trazer novos temas para os seus leitores, Sexton reinterpreta os contos dos Irmãos Grimm, mostrando o “[…] o horror inconsciente dos contos de fadas para suplantar o horror óbvio das instituições psiquiátricas.” Imerge nas faces ocultas dessas histórias, explorando a dor e a beleza que coexistem na vida das personagens. Além disso, ao longo da antologia, Sexton percorre caminhos considerados proibidos para a sociedade conservadora americana do século XX: o domínio do seu próprio corpo, masturbação, maternidade, loucura e menstruação. Trabalha, também, temas da subjetividade feminina, para além do papel social que se espera de uma dona de casa.

Eu queria ter um filho.

O útero não é um relógio

nem balada feito sino,

mas agora com onze meses de vida

vivo o novembro

do corpo assim como o do calendário.

(Sexton, 2023, p. 91)

Percebe-se que, ao longo da Antologia, o eu-lírico anseia pela busca da sanidade e, pode-se dizer, também, que Sexton, ao martelar seus dedos nas teclas, encontrava um pouco de descanso. A escrita, uma prática antiga, permitiu que seus sentimentos e tudo que há de abstrato ganhassem um formato, isto é, algo concreto e palpável. Penso, no entanto, que a poesia de Sexton está além de suas doenças psíquicas: a poeta aprofundou-se em subjetividades humanas, contos de horror e a condição feminina. Está, além, de sua própria autobiografia. Segundo Correia (2018, p.68),  “o papel da poesia tornara-se político, pois cabia agora ao gênero lírico encontrar o elo ligação entre os eventos históricos e o significado das  vidas  pessoais  de  todos  os  americanos; de todas as americanas.”Anne Sexton, de fato, fez dos versos e estrofes um significado de vida. A poesia, para ela, era uma religião, Deus estava em sua máquina de escrever.

Referências:

CORREIA, Susana.  Confessar a Morte: a Poesia política de Anne Sexton  e  Sylvia  Plath. Via Panoramica: Revista de Estudos Anglo-Americanos, [s. l.], v. 7, n. 1, p. 59-71, 2018

SEXTON, Anne. Compaixão/ Anne Sexton; organizado por Linda Grey Sexton, tradução por Bruna Beber.- Belo Horizonte: Relicário, 2023.

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