Por que “O Conto de Aia” fala tanto do Brasil atual?
Gostaríamos de ficar com a arte e com a apreciação do belo no campo do imagético. Ficaríamos satisfeitas em assistir filmes, ver obras de arte, ler bons livros de ficção e escrever nossas próprias histórias. Mas estamos vivendo em um mundo em que não é possível se transportar para um mundo alocado no irreal, no imaginário. Vivemos em um mundo em que nós, mulheres, nunca pudemos nos doar inteiramente ao belo e ao irreal, e todas as vezes que tentamos somos trazidas à realidade.
Queríamos ter a possibilidade de sentar, ler e imaginar um mundo diferente, que nos acolha e nos inunde do êxtase primaveril contido nos grandes épicos descritos nas primeiras obras que tivemos acesso, ou mais recentes, nos romances da era vitoriana, mas o que nos resta é a realidade nua e crua, exposta nas redes sociais, nos telejornais e em todos os lugares para os quais direcionamos nossos olhos.
Foi assim nos últimos anos e continua assim nos dias atuais, E quando pensamos que poderíamos ter dias de paz, a ex[creta] direta ressurge com suas “políticas de costume” e seu tradicionalismo pungente com projetos de leis que fariam os mais conservadores se revirar em seus túmulos. O caso é, que o projeto de lei n. 1.904/24 é uma prova de que nós mulheres não temos paz, nunca a tivemos, nunca a teremos, nem mesmo em realidades distópicas.
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O projeto de Lei, aprovado em carater de urgência no dia 12/6/2024 na Câmara, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, é um retrocesso, um entrave ao futuro e o possível fim dos direitos adquiridos pelas mulheres até aqui. E o que parecia uma história distópica bizarra, acaba ganhando forma e conteúdo, para além da imaginação.
Margaret Atwood, quando escreveu “O conto da aia”, talvez não vislumbrasse que em 2024 ainda vivenciássemos um avanço internacional da extrema direita pelo mundo, muito menos, que a onda reacionária tomasse conta de países do Sul Global, como é o caso do Brasil.
Se você ainda não conhece o romance “O conto da aia” ou não assistiu a sua adaptação “The Handmaid ‘s Tale” nos streamings, talvez, ainda não tenha sentido os impactos que conhecer esta história pode causar diante da realidade que nos assola. Qualquer semelhança não é pura coincidência.
No livro, o mundo sofre com uma crise de fertilidade e apenas algumas mulheres ainda são capazes de engravidar. Diante da dura realidade de não poder gerar seus próprios filhos, uma mulher, Serena Joy, baseada em preceitos bíblicos, cria um projeto que vai mudar para sempre a história das mulheres, a República de Gilead.
Em Gilead, todas as mulheres férteis e não férteis têm seus corpos controlados e ficam à disposição do Estado, uma instituição gerida apenas por homens. June, a protagonista, fala nas primeiras páginas, que “alguma coisa poderia ser negociada, acreditávamos, algum acordo feito, alguma permuta, ainda tínhamos nossos corpos. Essa era nossa fantasia”. Mas de fato, os seus corpos já haviam sido expropriados de tal forma, que nenhuma delas poderia ter imaginado.
O tradicionalismo é a base que direciona a República de Gilead, e nos perguntamos: não é o tradicionalismo que também conduz o Brasil? Quando chegamos a este ponto? Quando fomos colocados em uma teocracia, que deseja controlar e desumanizar o corpo das mulheres? Enquanto estamos vivendo esta realidade, podemos nos espelhar nas distopias, como o “O conto da aia” e tomar uma atitude antes que não haja mais o que fazer, ou que seja tarde demais.