Crítica do filme “1798: Revolta dos Búzios”, documentário do diretor Antonio Olavo
Há alguns temas que não encontram espaço nos currículos engessados de escolas e universidades. Um exemplo: passei pelo Ensino Fundamental, Médio e Superior sem nunca ouvir sobre a Independência da Bahia, que só fui conhecer após ir lá e saber do povo sobre a festa comemorada em dois de julho. Hoje falaremos da Bahia, mas de outro fato histórico.
Nos currículos e nos dias festivos, também muitas vezes não há espaço para acontecimentos históricos ocorridos fora do Sudeste. Prova disso é que se comemora e se estuda muito sobre a Inconfidência Mineira, mas é em geral en passant que os professores comentam sobre outro movimento de independência ocorrido menos de dez anos após a revolta que transformou Tiradentes em mártir. Trata-se da Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Búzios. É sobre ela que versa o documentário “1798: Revolta dos Búzios”.
Dois dias após o aparecimento de cartazes revolucionários afixados em diversos locais de Salvador, foi instaurada uma devassa, ou seja, uma investigação. Um homem foi preso, acusado de escrever os cartazes. Mas o movimento não foi derrotado: dez dias depois surgiram mais cartazes, conclamando para uma revolução. E ela não aconteceu, por causa da violenta repressão.
Lucas Dantas, Manoel Faustino, João de Deus: nomes dos revoltosos que nada perdem em importância ou engenhosidade para os inconfidentes Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa ou Joaquim José da Silva Xavier. Também há a citação, junto de imagens de mulheres diversas do povo, das mulheres, ligadas de um jeito ou de outro aos revoltosos, que ficaram alguns dias presas e foram interrogadas pelas autoridades durante a devassa da Conjuração Baiana. É raro vermos mulheres sendo citadas em episódios do Brasil Colonial e, apesar de elas serem coadjuvantes no fato narrado, é bom ver este reconhecimento.
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Assim como a Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana foi influenciada pelos ideais iluministas – tanto é que um dos cartazes pedia “liberdade, igualdade e fraternidade” e o povo zombava da tentativa dos revoltosos chamando-a de “história de francesias”. Ao contrário da Inconfidência Mineira, a Conjuração Baiana foi liderada por negros e tinha como objetivo a instalação de uma república com a abolição da escravidão. Homens brancos também participaram da Revolta dos Búzios, principalmente como patrocinadores, e tiveram penas brandas se comparadas às dos negros.
As falas dos “personagens” foram tiradas dos autos da devassa, que somam mais de duas mil páginas manuscritas que passaram pelo escrutínio do diretor. Colocar nas bocas dos atores as palavras que foram ditas realmente pelos investigados adiciona mais uma camada de veracidade e ajuda a construir uma aproximação única com figuras históricas.
O documentário acompanha dia a dia o desenrolar da Revolta dos Búzios de 12/08/1798 até 08/11/1799. Há alguns intervalos de tempo em que nada acontece, é verdade, mas o exame minucioso dos fatos pode cansar mais que informar.
“1798: Revolta dos Búzios” é um documentário finalizado em 2019 que só conseguiu chegar a algumas salas de cinema agora, cinco anos depois. O cinema brasileiro historicamente sofre com a má distribuição de seus filmes, que sempre tiveram que competir com filmes estrangeiros nas salas de exibição. A preparação para filmar também levou muito tempo, 13 anos para ser mais exata, durante os quais o diretor pesquisou intensamente para ganhar “segurança e serenidade”.
O pesquisador e também diretor do filme, Antonio Olavo, que trabalha com temáticas para a preservação e divulgação das memórias do povo negro, teve de lidar com o peso das expectativas ao fazer o documentário, conforme declara:
“Nosso maior desafio foi construir um filme que fosse digno da grandiosidade do tema. A história ocorreu há 226 anos e terminou de forma trágica com quatro jovens negros enforcados e esquartejados em praça pública diante de milhares de pessoas, punidos por sonharem com bandeiras universais como a independência, a República e a liberdade diante a escravidão. Creio que conseguimos fazer um filme positivador (sic), contribuindo para o fortalecimento da história e memória do povo negro no Brasil”
Antonio Olavo dá início, com “1798: Revolta dos Búzios”, a uma trilogia sobre revoluções negras na Bahia, que se completa com a Revolta dos Malês em 1835 e a Sabinada em 1837, fatos que ele também quer transportar para o cinema.
Consigo visualizar perfeitamente este documentário sendo exibido em salas de aula para alunos mais ou menos interessados. Muito mais que “matar tempo” de aula, ele verdadeiramente informa, embora seja algo cansativo. Conhecer nossa história é um ato de empoderamento, e se isto puder ser feito de maneira didática com o cinema, melhor ainda.
Confira o trailer especial: