“Os óculos do poeta”: a ótica cotidiana de Luciano Alberto de Castro através das crônicas

Peregrino das entranhas de seu cotidiano, Luciano Alberto de Castro é autor de “Os óculos do poeta e outras crônicas de circunstância”, coletânea de crônicas publicada pela Kotter Editora em 2023. Formado por 50 crônicas, o compilado apresenta perspectivas poeticamente críticas sobre o que rodeia o autor.

Docente e dentista de formação, Luciano se dedica à música e à literatura não apenas como hobby, mas como extensão de si. Ainda que este seja um livro de crônicas, é interessante destacar que a multiface do autor se desdobra também sobre a escrita de contos e poesia. “Os óculos do poeta” é o seu livro de estreia “solo”, já que anteriormente havia participado de coletâneas ao lado de outros escritores, e decerto concluiu o trabalho com maestria.

Os temas variam entre banalidades, como quando discute que a banana é a melhor fruta; porém outros escritos tecem assuntos sóbrios e, recorrentemente, melancólicos. Luciano coloca, primorosamente, o leitor na janelinha do bonde que guia, fazendo com que andemos ao seu lado — acredito que essa facilidade de nos levar como quem passeia lado a lado é habilidade desenvolvida pela docência; uma didática ímpar que interfere até no modo de observar a vida.

Um polímata e a melancolia

De sua biografia se destaca a sua profissão: dentista. Apesar disso (e uso “apesar” porque tendemos a achar que essa é uma profissão mais “exata”, pouco propensa a compartilhar espaço com escritores), Luciano mescla todas as suas habilidades com primor. Inclusive, o autor menciona essa coexistência de ambos os ofícios em seu texto “Dentistas e coelhos”, que certamente prenderá a atenção dos polímatas. Em sua reflexão, Luciano menciona que acredita que as artes permitem a revelação de caminhos escurecidos pela ignorância, e que a descoberta dessas alamedas esculpidas pela literatura e pela música, por exemplo, são de extrema importância até mesmo para o exercício de profissões como a sua.

“Acredito, inclusive, que isso nos torna mais sensíveis na prática clínica. Pra navegar com equilíbrio, entendo que a assimilação de outros pensares e interesses seja uma forma de deixar o barco mais estável e mais preparado para cruzar esse oceano inconstante e misterioso que é a vida.”

É em trechos como o acima mencionado que encontramos em suas crônicas um lado que vai além das anotações sobre acontecimentos diversos; são, sobretudo, notas sensíveis sobre a realidade que muitos enxergam, mas dificilmente observam. Nesse sentido, Luciano também traça uma rota que fala de outro lado pessoal: o luto.

Esse assunto delicado é inaugurado logo na epígrafe, em que Luciano escreve uma dedicatória belíssima à Iracele, que mais tarde entenderemos quem é. Iracele retorna em “Flores que a gente regue”, um texto que destoa em forma e em tom. Aqui leremos uma espécie de carta escrita por Luciano, e é improvável que seu conteúdo passe batido. Afinal, o que fazer com o luto e sua consequente solidão? Apesar de que a escrita não é terapia, mas sim terapêutica, o autor se utilizará disso nesse escrito tão tocante e nobre.

Quando Cristo disse “Meu Reino não é deste mundo”, estava nos ensinando um princípio fundamental: que a vida não é só aqui, que existe outra morada, um reino, um lugar de riquezas, a maior delas o amor, eterno e indestrutível. Tivemos nosso pequeno reinado material: nossa casa, nossas manhãs, nossas flores. Esse palácio se desfez, mas algum dia nós o reconstruiremos de luz: teremos outro lar que nos abrigue, novas manhãs que nos alegrem, novas flores que a gente regue.”

Por caminhar em terras conhecidas por todos, ainda que indiretamente, não é difícil que nos reconheçamos em seus textos. Além de tudo, é recompensador lermos algo e enxergar fragmentos nossos ali, dispersos em uma escrita que nem é confissão nossa. Ler um autor que discorre “acidentalmente” sobre quem somos, o que sentimos, o que fazemos, é como folhear nossa própria história.

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Diário político

Parte da coletânea, vale mencionar, traz uma espécie de “diário” dos difíceis tempos da pandemia de COVID-19. Parte de seus escritos reunidos em “Os óculos do poeta” já haviam sido publicados em outros veículos, inclusive as anotações sobre os tempos bárbaros que enfrentamos em 2020. Assim sendo, a retomada desses pesadelos em vida que presenciamos faz com que a coletânea seja também uma denúncia daquela realidade a ponto de fazer o leitor estremecer: com esses excertos lembramos do passado com a ajuda da caneta daquele presente.

Parcela considerável do mundo acreditava que a retomada da rotina, como nos tempos antes da pandemia, seria impossível. Enxergando através dos óculos do poeta que é Luciano, nos deparamos com um sujeito que fomos, aquele amedrontado e com falta de perspectiva, abatidos e horrorizados com o crescimento exponencial de mortes. Ainda que a tristeza resultante do período seja inesgotável, ler seu testemunho traz alívio.

Já estivemos naquele lugar trevoso, e agora lemos como quando encontramos livros de história que relatam barbaridades de outros tempos. Textos assim são fundamentais para que a necropolítica, o bolsonarismo devastador e o pensamento coletivo que marcaram o período (e seguem marcando) não sejam esquecidos. Mesmo que Fernando Pessoa achasse que escrever é esquecer, Luciano mostra que o sentido é contrário: escrever para lembrar, porque esquecer seria grave demais.

“Vaticino que o governo Bolsonaro está com os dias contados, mas o bolsonarismo permanecerá, incrustado em esporos capazes de se manter dormentes até que um mau vento os desperte mais uma vez.”

Os paralelos literários

Dizia Virginia Woolf: “leia mil livros e suas palavras fluirão como um rio”. Ouso dizer que um escritor que não é igualmente deslumbrado pela leitura certamente não se sairá tão bem ao escrever. É importante que tenhamos nossas bases; não para que as copiemos, mas para conhecermos o terreno a que nos dedicamos, algo como a importância da ancestralidade para algumas religiões.

Assim sendo, o leitor contará com uma série de referências literárias ao longo de “Os óculos do poeta”. Com ênfase, Luciano mencionará Lima Barreto (a quem dedica um texto belíssimo, inclusive), Guimarães Rosa, Machado de Assis e Drummond, autores que lhe são grandes referências. Ainda que essas menções se estendam por toda a obra, uma parte em especial do livro, “Personalidades e admirações”, é dedicada para conteúdos mais direcionados à literatura, sobretudo a brasileira.

Ler Clarice Lispector é um soco no estômago. Esse estremecimento não me incomoda; pelo contrário, estimula. […] Para a democracia, aqueles [1967 a 1973] foram anos de chumbo, ferro e outros metais menos nobres. Para a literatura, foram anos de ouro.

No geral, a escrita de Luciano é agradável e fluida. A extensão do livro não é longa, e a escolha de palavras simples e temas interessantes fazem com que pareça ainda menor. “Óculos do poeta” certamente suscitará no leitor a vontade de seguir em contato com a literatura do autor.

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1 comentário

Jaime David Pinilla 20 de fevereiro de 2024 - 14:06
La reseña que hace Angélica Frangella es apenas justa con el libro, "Los anteojos del poeta" y con el autor, Luciano Alberto de Castro. La melancolía, en efecto, está en el intertexto durante todo el libro, en el que el autor muestra no solo su erudición, sino también su particular sensibilidad con la naturaleza, por un lado, (las flores, los pájaros) y, por otro, con las emociones humanas, dentro de las cuales está, cómo no, la melancolía. Para quienes lo leemos desde fuera de Brasil, como es mi caso, cada crónica del libro es una ventana por la cual asomarnos a la historia rica cultura brasilera, gracias a que cita aquí y allá a personajes variopintos, como poetas, escritores, músicos e inclusive pintores. Y todo con una escritura impecable, me encanta.
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