Vidas sem Margens, de Alice Casimiro Lopes: a sensibilidade como matéria bruta da literatura

A sensibilidade, um dos materiais brutos mais em falta no mundo, é característica dos corpos gentis e indóceis, atentos e etéreos, por isso requer que sua captura seja feita lentamente, passo a passo, pois nunca se sabe quando uma brutalidade qualquer pode a desfazer. Parece que eu estou falando filosófico, mas não, estou apenas me preparando para comentar a preciosidade que me chegou às mãos: o livro de contos Vidas Sem Margens, de Alice Casimiro Lopes. Trata-se de um livro desses tão raros e sutis que requer o cuidado de se ler devagar, com o risco de se desfazer um projeto que como muitos já não há. 

Quero começar esse texto trazendo uma leitura a contrapelo do livro porque acredito que Alice guardou para o fim, talvez, o conto que poderia servir como alegoria para todo o resto. Chama-se Últimos Dias e conta a história de um sujeito que está escrevendo sobre os últimos dias de vida de seu pai. Na descrição minuciosa, o conto revela o silêncio da família diante da doença do pai e, aos poucos, uma revelação tácita de que a morte bate à porta do patriarca. Passo a passo, a autora nos faz reconhecer a aproximação da morte através de seus rituais, a ida ao médico, a internação no hospital, a presença dos filhos durante a noite, a troca de filhos na companhia do pai, o coma que se aproxima.

De repente, temos um corte abrupto: a história não é mais sobre essa família, não é mais sobre o pai, não é mais sobre a dor nem tampouco sobre a morte. Agora, estamos diante de um diálogo brusco, roteirizado, entre um escritor – aquele que conta a história da morte do seu pai – e um editor que insiste em propor mudanças no texto, dizendo ver sobras aqui, sentimentalidades a menos ou a mais acolá, descrições poucas ou muitas. 

O conto prossegue de modo que, a cada bloco, temos a história recontada, reinventada de acordo com ânsias e desejos de um editor, assim como de outro diálogo de quem vê, ainda, necessidade de mudar algo na história. O impacto deste conto está na lenta e sensível – por isso o começo da resenha – dessensibilização da história da morte desse pai para a gradualmente tecnicalização da escrita sobre essa experiência. A vida, agora apropriada pela palavra e pela necessidade de uma palavra precisa, passa a ser aporte narrativo para um contar e não uma experiência, uma tentativa de se dividir este momento de dor. 

Peço perdão se me estendi na descrição deste conto, mas creio que podemos extrair dele parte dos procedimentos literários que vamos ler em Vidas sem Margens. O livro é uma reunião de 20 contos de Alice Casimiro Lopes, carioca e doutora em educação pela UFRJ. Neste riquíssimo livro, Vidas Sem Margens, publicado pela editora Oito e Meio, ela embarca pela primeira vez na ficção reunindo histórias, embora ela já tenha escrito e publicado anteriormente em coletâneas como a OFF FLIP e da Carreira Literária. Eu já a conhecia do blog Literatice (que na minha cabeça sempre é Literalice) e das suas perspicazes leituras de outras obras, mas só agora mergulho em sua prosa de ficção. 

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Pode-se dizer que Vidas Sem Margens é uma obra sobre trajetos e sobre movimentos. Acompanhamos uma série de corpos e vidas em trânsitos diante de suas próprias histórias de vida. Como o próprio título sugere, Vidas sem Margens é e não é sobre seres às margens da vida, mas sobre subjetividades em transformação e em movimento, seres que estão encaixados nas instituições da vida como casal, família, trabalho, sonhos até, sim, sonhos.

Dividido em quatro partes, os contos vão transitando pelas estruturas desses pequenos núcleos em que nos acolhemos e nos abrigamos na vida: a dois, a três, a sós, em família. Através desse corpus quase cartesiano que nos coloca como matemáticos diante de nossos afetos, o que faz Alice é justamente romper com esses núcleos: são todas vidas sem margens, todos somos, vidas (s)em margens. 

O primeiro conto que dá título ao livro é apenas uma partícula do que vamos ver: uma jovem que usa uma prótese e vai morar com alguém e leva seu zoológico embalado. Aos poucos, os animais começam a tomar conta da casa e engolem esse sujeito enquanto a narradora ouve vozes de um unicórnio que diz: “mata”. É que todas essas personagens, as muitas que conhecemos, entendem aos poucos “pela primeira vez o poema de Drummond que fala de amantes como meninos estragados se destruindo”. E essas serão um pouco das histórias da primeira parte. 

Um outro ponto muito curioso da escrita de Alice Casimiro Lopes é como ela faz uma elegante transubstanciação de sua linguagem. Claramente aprendiz dos melhores contistas, vemos aqui e acolá uma escritora atenta como Machado de Assis, forte e dócil como um Manuel Bandeira e rebeldemente sensível como Lygia Fagundes Telles. E isto aparece por vezes através de produção de imagens que estão em choque com os sentidos, ou melhor dizendo, uma construção de imagens para o leitor que não é dada pela materialidade própria da palavra, mas pela fricção dessa imagem com algo que não seria o familiar. Através deste infamiliar lemos coisas como:

De repente, não mais que de repente, Marina se vê oca, desguarnecida, em uma casa desabitada, olhando o vácuo como quem joga a vista em uma planície sem montanhas ao fundo. A angústia faz com que esse espaço vago aumente a ponto de seus gritos não terem como ecoar. Nem o assombro por saber da vida desconhecida do marido é capaz de fazer um som sair de si. 

Repare que este parágrafo diz muito: o desguarnecimento de Marina é comparado a uma casa habitada, porém Alice faz um deslocamento: não se fala mais de Marina. Temos a impressão de que, por um afastamento da personagem, é a casa que joga o vácuo na planície sem montanhas. Assim, fazemos uma rapidíssima associação de imagens: a casa ganha a solidão e é esta solidão da casa em específico que cola em Marina.

Este procedimento, difícil e raro, prepara o outro trecho em que o assombro não permite um som sair de si. De novo: não é o corpo que não produz som, não há um som preso necessariamente. O sujeito desta frase não é Marina  desguarnecida, mas o assombro que emudece e não permite um som sair DELE e não de Marina. Mas de quem é o assombro? Então…este é o procedimento que Alice faz uso.

Eu poderia continuar traçando pequenas características marcantes de Vidas sem Margens, mas acho importante destacar que a qualidade deste livro não está propriamente nas boas histórias, mas nos simples recursos usados de formas tão refrescantes. Algumas dessas histórias chegaram a me assombrar a ponto de sentir medo de ser pego em flagrante, como se as histórias fossem capazes de, enquanto contam histórias de outros inventados, também contarem a minha própria história escondida. 

Acredito, porém, que Alice Casimiro Lopes nos deixou sua fórmula mágica quando, em uma história, também soube se revelar:

Gosto de escrever como gosto de pão com centeio com manteiga acompanhado de café. Gosto de teclar e preencher a tela, uma relação urgente. Escrever só é suplantado por reescrever. Cortar palavras, substituir umas pelas outras, perceber o efeito do sentido pretendido nem sempre produzido. 

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