A falha do retorno em “Os tempos da fuga”, de Giovana Proença

“Quando termina a escrita de um trauma? Quantos anos, ou décadas, são necessários para que um fato traumático se incorpore à memória social sem machucar nem se banalizar?”, é o que escreve Maria Rita Kehl em seu texto “A ironia e a dor”. Caminhando em um sentido que percorre esse questionamento, Os tempos da fuga, romance de estreia de Giovana Proença, revolve as entranhas das sequelas deixadas pela Ditadura Militar no Brasil.

Com a Anistia em pauta, Lígia retorna ao Brasil em 1979, após ter se exilado na Argentina durante os anos de perseguição da Ditadura Militar no Brasil. Seu retorno é marcado por uma nostalgia suja pela tristeza de encontrar uma terra devastada, que jamais seria digna de ser chamada de “lar” novamente. Acompanhando sua trajetória, urge a necessidade de entender de que forma Lígia se solta daqueles que a perseguem, pois sabemos a dura pena da captura – sobretudo para mulheres.

Pesquisadora e crítica, Giovana ainda traz ao romance uma bagagem de referências literárias que complementam a obra, a exemplo dos paralelos entre o casal sáfico que delineia parte dos episódios de Os tempos da fuga e a relação entre a autora Virginia Woolf e Vita Sackville-West. É também ao longo da jornada de Lígia que acompanhamos pequenos diálogos sobre Ao Farol, clássico de Woolf, bem como a encontramos cercada por grandes autores da literatura argentina ao se aventurar em uma livraria. E poderia ser, quem sabe, o próprio nome da protagonista inspirado na dama da literatura brasileira? Essas minucias, escondidas nas entrelinhas, certamente são bálsamos para muitas leitoras e leitores.

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As qualidades que motivam a leitura do romance recaem também em outro aspecto que se estende para além da contextualização precisa e dos desencadeamentos narrativos instigantes. Parte da magia e encantamento contidos em Os tempos da fuga nascem da escrita de Giovana, que não se perde em descrições desnecessárias, e que pontua tudo com destreza e sensibilidade ímpar. Inclusive, este será um dos grandes atrativos para os que adoram sublinhar, anotar e marcar seus livros, já que a leitura é preenchida por momentos viscerais acompanhados por trechos arrepiantes. A todo instante, a escrita de Giovana ecoa a necessidade de elaborar, escrever e reescrever um passado que não deve ser repetido.

Retornando de seu exílio, inevitavelmente experimentamos da mesma tristeza e angústia de Lígia, que se depara com um lugar que nunca mais lhe traria a sensação de pertencimento. Nos tempos da fuga, a falha é o regresso. A volta de Ligia é acompanhada pelo mesmo tom irônico que marca o fim de outros exílios, como o que Bertolt Brecht escreve em seu poema “Ao ator P. L. no exílio”:

“Ouve, nós te chamamos de volta. Expulso,/ Agora deves retornar. Da terra/ Onde uma vez correram leite e mel/ Foste expulso. És chamado de volta/ À terra destruída. E nada mais/ Temos a oferecer, senão/ Que precisamos de ti./ Pobre ou rico/ Doente ou são/ Esquece tudo/ E vem.”

Ainda que a autora especifique o tempo e espaço em que a narrativa se insere, suas palavras se soltam das páginas e voam pelo vento de todas as guerras, conflitos e opressões que suscitaram ódio e massacres ao longo dos séculos. É preciso que contextos como o da Ditadura Militar no Brasil sigam sendo pano de fundo de romances como Os tempos da fuga, até que essa literatura delatora atinja diretamente aqueles que fizeram de Ligia uma exilada.

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