“A polícia da memória”, de Yoko Ogawa: a distopia das memórias perdidas

“A Polícia da Memória”, Yoko Ogawa. Tradução Andrei Cunha. Estação Liberdade, 2021.

Em entrevista recente, quando perguntada sobre a possível relação entre a cultura japonesa e a conexão entre corpo e objeto em suas obras, Yoko Ogawa respondeu:

“Na língua japonesa, a palavra “MONO” é tanto usada para expressar uma pessoa (者) quanto um objeto (物); são homófonas. Talvez por terem uma história religiosa distinta do monoteísmo, os japoneses acreditam que Deus reside na cozinha, na montanha, em um grão de arroz ou em uma folha seca. Por exemplo, digamos que haja agora uma pedra aqui. Eu a pego, sinto seu peso, acaricio sua superfície, observo seu formato. Dessa forma, revivo em minha mente a imagem das pessoas que da mesma forma que eu seguraram essa pedra no passado. Escrevo romances para trazer essas pessoas de volta por um momento do mundo dos mortos.” (Revista Quatro cinco um, p. 36, setembro/23)

“A polícia da Memória”, em particular, traz a história de uma ilha sem nome na qual tudo está fadado a desaparecer. Os sumiços, contudo, não começam como algo físico. As coisas, na verdade, desaparecem inicialmente da memória das pessoas, de seus corações, elas simplesmente param de fazer sentido e é aí que a polícia secreta, a polícia da memória, entra: fazer cumprir os desaparecimentos, não deixar qualquer vestígio daquilo que não existe mais. O caráter distópico da narrativa reside nesse estado policial que anula o que é considerado fora do padrão, que persegue aqueles que não esquecem, pois eles existem e precisam se esconder, pois uma vez capturados, eles também estão fadados a desaparecer. 

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No entanto, o que antes acontecia aqui e ali foi se tornando uma verdadeira epidemia e as coisas começaram a efetivamente se complicar mesmo diante da resignação dos moradores que a cada desaparecimento repetiam o processo de se livrarem do que não mais existe em busca de se adaptarem à nova realidade. 

Nesse contexto de intensificação dos desaparecimentos e da consequente perseguição pela polícia secreta é que a narradora, uma escritora sem nome como a ilha, busca uma forma de ajudar seu editor, que assim como sua mãe, é uma das pessoas capazes de lembrar. O livro, inclusive, começa com uma lembrança da infância dessa narradora, na qual ela contempla e ouve histórias acerca de objetos que não fazem qualquer sentido para ela, nem despertam sentimentos ou emoções, mas que são relíquias para sua mãe, que os mantém em segredo até o dia no qual ela é levada pela polícia.

Para além do temor dessa polícia secreta, uma série de conflitos internos e ao mesmo tempo coletivos se instala diante da possibilidade da não existência, avançando também pelo romance que acompanhamos em paralelo, escrito pela narradora, e que aos poucos vai convergindo para a narrativa principal.

De que somos feitos? Qual o papel dos objetos que nos cercam? O quão importante são as memórias na formação de quem somos? Yoko Ogawa leva essas reflexões ao limite. A cada desaparecimento um novo buraco se abre e fica a pergunta: Até que ponto seguimos existindo com tantas ausências preenchendo nossas vidas e nossos corações de vazio?

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