“Beijando o chão por onde você passou”: drama asiático de sofrimento contemplativo

 “Beijando o chão por onde você passou”: romance platônico de Macau entre um escritor solitário e um ator iniciante carrega a tradição do cinema asiático de contemplação

Perdão desde início pela conjuração de dois diretores asiáticos bem diferentes para chegar nessa conclusão, mas o macaense Beijando o chão por onde você passou soa de algum modo como algo entre a uma versão diluída da contemplação do malaio Tsai Ming Liang (diretor de “Dias”, exibido na mostra 2019) e da intensidade sofrida do japonês Ryusuke Hamaguchi (diretor de Drive My Car e de Roda do destino, exibido em 2021 no festival). Quer dizer, para pegar algo bem contemporâneo. 

Nessa mistura, esse drama romântico de distanciamento sensual não vai tão longe para nenhum dos dois lados, mas nos coloca para sentir o que os personagens sentem. Coisa que os dois principais aqui, o escritor que não escreve mais e o ator que recém começou, fazem alusão cada um ao seu modo. 

Um deles, dormente por uma realidade que o outro ainda não acessa completamente pela sua perspectiva eufórica. Um vivendo suas mentiras que julga inofensivas. Outro que não consegue enxergar muito além da brutalidade indiferente de suas verdades. Em um enredo até bem clássico de uma relação platônica. 

Assim como uma cena em que o ator se equilibra em uma mureta, entretanto, o filme caminha em uma linha tênue muitas vezes entre a construção de personagens que uns podem achar soturnos e misteriosos e outros podem sentir como algo desinteressado e deixado de lado. Mas que no fim funciona porque o filme se apoia em um minimalismo ponderado. Tão abstrato a ponto de girar no próprio eixo mas tão direto a ponto de preencher a tela com texto. Literalmente. Em pedaços de poesias e relatos sem contexto que funcionam numa descrição e potencialização das situações.

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Bem representativo desse cinema asiático independente, eu entenderia quem achasse tudo muito genérico. Mas retomando as referências do início, o que existe de comum entre a sofrência e a contemplação e que caminha sob a superfície da obra é uma sensualidade muito latente. Então mais que o sofrimento silencioso, a identificação, o encantamento, o desejo está presente de formas que a gente mal consegue descrever de tão sutis. Nada necessariamente provocativo ou explícito, mas que se materializa na observação. O voyeurismo de um que assiste ao outro sempre distante. Ouve atrás da parede. Espia. 

O que às vezes acontece de formas até cronologicamente inversas como quando um decide assistir a um filme que tem o outro no elenco e ele próprio surge no cinema e se senta algumas poltronas à frente. Como se ele fosse ao local para espiar algo que ele não sabia que estaria lá. Enquanto do outro lado, a tentativa de acessar a cabeça do escritor vem, sem querer, por querer, pela tentativa de desvendar. O quarto fechado por cadeado. O livro que ele acha errático demais para entender. 

Enquanto a gente vê tudo meio de fora. Atrás da janela interna do escritório. Através das janelas do apartamento. Até na escolha dos quadros e das lentes da câmera. Com um quadro sem profundidade de campo que traz à tona uma ideia de espreita em uma cena interna. Como se a gente estivesse assistindo algo que não deve. Enquanto um olha para fora, buscando as réstias de luz que refletem na sua mão e o outro olha pra dentro. Ou vive lá dentro. Nunca indo longe a ponto de expressar seus sentimentos escondidos. Deixando a vazão da sua vontade aos gestos como o cheiro em uma toalha. Qua acompanhamos também do lado de fora.

É algo que sintetiza uma ideia que parece ser a central aqui mas que também se esconde da superfície, nunca sendo verbalizada de fato. A coisa do como a arte serve de meio de expressão para quem não consegue por certas coisas pra fora. 

Veja o trailer completo aqui:

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