Toda cidade é uma caótica cartografia. É, por um lado, desordenada, desencaixada, e possui um crescimento não planejado que se espalha meio que imprevisivelmente. Por outro, é um imenso mapa que desenha por sobre a terra formas, padrões, ordenamentos de espaços quase cartesianos de produção de vida e movimento. É nesse tipo de cidade labiríntica que há um bairro chamado Flores, o território firme-móvel da obra As Noites de Flores de Cesar Aira.
Cesar Aira, um dos mais celebrados escritores contemporâneos argentinos, considerado “o segredo mais bem guardado da literatura argentina” escreveu As Noites de Flores em 2003. O livro é sobre essa cidade que, violenta, expulsa seus habitantes das ruas assim que escurecem e os coloca de frente para a luminosidade das informações e entretenimentos televisivos. Entretanto, na contramão desse fato, estão Aldo e Rosa, um casal de meia idade que resolve trabalhar como entregadores de pizza no período noturno. Assim, abandonam o conforto da casa e até da usual motocicleta e resolvem fazer todos os serviços de entrega a pé. Em meio a turbulentos acontecimentos descobrem um estranho convento de freiras viciadas em poker e pizzas.
Leia também: Os Fantasmas, de Cesar Aira, um convite à construção da literatura
Esse casal que anda de lá pra cá pode observar a cidade tal como ela se apresenta, de maneira crua, sem a mediação dos veículos de informação, sem a falação dos homens medrosos e religiosos de meia idade. O crime que faz parte de toda cidade, ali também espanta, mas o maior espanto parece ser o seu oposto:
As pessoas não se surpreendiam com o fato de que acontecessem tantos crimes, mas sim de que não houvesse ainda mais. O que é que eles estavam esperando para começar a matar, destruir, incendiar?
Aldo, que se fazia de “sem memória” completa: “Se eles tivessem um mínimo de dignidade não pediam esmola. Roubavam.” E assim a história se desenrola, acompanhando, por um lado, essas duas figuras estranhamente anacrônicas, a presença de um anão que anda com um bizarro disfarce e um investigador da polícia que é encarregado de investigar o sequestro-assassinado de um rapaz motoboy. No entanto, tudo isso dito assim, narrativamente, não consegue nem ao menos se aproximar da experiência de leitura de Aira. O autor desloca o leitor dos fatos narrativos para um outro nível, comum à literatura argentina, mas agora com um vigor contemporâneo a mais em relação a Cortázar ou Borges. Esse nível é o da linguagem como jogo, como construção, como vestígio. Para isso, uso uma reflexão de Aldo e Rosa, mas que também poderia ser de Aira:
Eles sentiam que o que eles levavam às casas não eram pizzas: eram mensagens que ninguém mais entendia, a mensagem do desaparecimento de tudo.
O desaparecimento de tudo ou, se poderia dizer também, o nada completo faz parte do procedimento de César Aira que se usa de uma língua que flutua, que é súbita, que muda de velocidade, pacto e acordos e literalmente joga com o imaginário do leitor com uma inventividade rara para engendrar um processo que aponta diretamente para si, por um lado, e por outro para toda uma reflexão da cidade e das formas de vida.
Quando digo que a cidade é caos e mapa, é porque a escrita de Aira está exatamente nessa confluência: entre a total indistinção das forças que abrem tentáculos para todos os lados ou como concentração de acasos ou como coincidências que parecem dar total sentido à materialidade artística. A verdade é que o autor lida com o que podemos chamar de vestígios, ou seja, deixa algo aquilo e ali que pode passar despercebido, mas que fatalmente vai reaparecer ressignificado em um outro momento em que um já é outro.
As Noites de Flores é leitura obrigatória para aqueles que gostam da literatura argentina ou sulamericana. César Aira escreve livros que parecem que nascem clássicos e que, ao lermos termos como GPS ou outros dispositivos tecnológicos nos dá um choque de realidade. Sim, trata-se de um autor contemporâneo. E compartilhar dessas duas vertentes anacrônicas – o para sempre e o agora – é talvez o que há de mais valor substancial no campo da literatura.
Compre o livro aqui!