“Enquanto Agonizo”, de William Faulkner, a literatura que se desfaz do tempo

Resenha crítica de Enquanto Agonizo, clássico de William Faulkner

Vivimos em la nada, después de la tormenta.”
Enrique Vila-Matas

A literatura do sul dos Estados Unidos é uma das mais interessantes daquele país, podendo-se fazer uma ponte com nossa literatura regional brasileira. Por contar com uma crueza de linguagem, de pensamento e de aproximação da subjetividade humana, é naqueles que estão mais afastados do sonho americano e que são açoitados por essa ideia apenas perifericamente que temos a dimensão de como funciona esse poderio americano na mente de pessoas simples, que pouco se importam como esse império.

A obra de William Faulkner, ganhador do Nobel em 1949, é reconhecida como uma das mais influentes para o pensamento libertário do fim da década de 60. É comum ouvir da geração beat que sua primeira influência literária está no autor, assim como em outros como Henry Miller. E não é por acaso, com uma forma arrojada e uma linguagem que ultrapassa o limite de si própria, caindo muitas vezes naquilo que podemos chamar de desvios gramatical e arranjo formal, Faulkner chega a um estilo das grandes obras, que desafiam o próprio gênero romanesco e colocam o público diante de um abismo. É o que acontece com Enquanto Agonizo (1929).

O livro é sobre uma família que aguarda e se prepara para a morte da mulher da casa. O marido (Anse) e os filhos (Cash, Darl, Dewey Dell, Vardaman e Jewel), em uma espécie de luto antecipado, reúnem-se ao redor daquela casa, guardando uma silenciosa melancolia e incapacidade de diálogos proeminentes para que a despedida daquela que acompanhou grande parte da vida de todos seja a mais respeitável e justa possível. Após sua morte, toda a família sai em peregrinação para o enterro da mulher em outra cidade, passando por diversas adversidades que expõe o ridículo da condição humana.

Leia também: 5 motivos (e dicas) para ler O Som e a Fúria, de William Faulkner

O que Faulkner em Enquanto Agonizo é nos colocar todo o tempo de frente para as condições essenciais da vida. Seus personagens, quase sempre sem ânimo para, sem disposição, que só conseguem agir por impulsos primários, estão colocados diante de questões primárias, que desviam o foco de um cotidiano comum de homem do campo. A morte que bate-lhes a porta, circunda tanto a mente das crianças como do pai de família e, é colocada simplória, banal, sem qualquer tipo de apego ou problemático. Cito:

“Os niilistas dizem que é o fim; os fundamentalistas, o começo; quando na realidade não é mais do que um simples inquilino ou uma família deixando uma casa ou uma cidade.” E deixar a casa é deixar de estar na casa, ou seja, é não estar mais, é ter de encarar esse sentimento de solidão, afinal de contas, “é preciso duas pessoas para fazer alguém e apenas uma para morrer.”

A mulher agonizante, segundo o filho mais novo, apenas uma criança, é “um peixe”, ou seja, um ser da natureza, quase imortal que nada pelos mares e serve de alimento. Ela é alguém livre, que não perece, por isso ele não reconhece o corpo da mãe no caixão, ao mesmo tempo em que sua irmã mais velha, grávida, já tem uma visão mais trágica da vida. Para ela, tudo no mundo está “dentro de um balde de tripas” e ela é apenas “um pequeno balde de tripas”, ou seja, é corpo, mas um corpo que decai e se destrói.

O Homem Angustiado (The Angushed Man, no nome original) 

Nesse mundo que se desfaz em nada, o que pode haver é a capacidade de pensar. A personagem Darl é visto como “aquele que pensa”, mas é também aquele que “pensa demais”. O que para os demais personagens é uma fala, uma vez que “o cérebro é como uma peça de máquina: não aguenta funcionar em excesso.” E isso se torna a desculpa ou o espaço que aqueles seres precisam para se alinhar a uma religiosidade desesperada e a pequenas promessas contra quaisquer adversidades que se apresentam. A peregrinação que Anse faz para o enterro, transforma-o em um Quixote ainda mais ridículo ou, quem sabe, em um Pagador de Promessas, que não pode desistir mesmo que o mundo não apresente nenhuma assonância com suas necessidades.

O que resta? Um sentimento de inutilidade da vida, sensação de não tempo, de não espaço, de uma circularidade da vida para o nada. Darl, em uma de suas reflexões, diz:

“Se você pudesse se desfazer no tempo. Seria agradável. Seria agradável se a gente pudesse se desfazer no tempo.”

A imponente forma do livro, dando cada capítulo para o pensamento e a perspectiva de cada personagem, assume um caráter de renovação literária, abrindo um campo literário para um misticismo do corpo que será muito caro a toda a tradição literária americana posterior que busca fugir da racionalidade da guerra e da instrumentalização do sistema publicitário capitalista. Faulkner é uma das mais densas leituras, mas com aquela densidade americana que vai muito fundo naquilo que não tem fundo, que parece vazio.

Compre o livro aqui!

Related posts

Romance “CAVALA,” de Mariana Higa, explora infância e aborto em narrativa com Clarice Lispector

“Ariano Suassuna: no teatro da vida”: livro celebra a vida e a obra de Ariano Suassuna nos 10 anos de sua morte

“Cisne de vidro”: potente romance de Claudinei Sevegnani propõe uma dança entre esquecer e tentar lembrar