A tatuagem de pássaro, de Dunya Mikhail

Publicado pela editora Tabla, “A tatuagem de pássaro”, da escritora iraniana Dunya Mikhail, retrata a violência contra o povo iázidi.

O que faz com que um genocídio ganhe mais ou menos atenção da comunidade internacional? Por que algumas tragédias provocam mais comoção que outras? É com essa última pergunta que Paula Carvalho finaliza o texto de orelha de “A tatuagem de Pássaro”, da escritora iraquiana Dunya Mikhail, publicado no Brasil pela Editora Tabla.

A pergunta é certeira, e escancara os processos de hierarquização da vida que, com base em chaves de leitura coloniais do mundo, tornam algumas vidas mais dignas que outras. A filósofa e feminista Judith Butler faz esse debate pensando nos processos que fazem com que algumas vidas sejam mais dignas de serem choradas do que outras. Quando morre uma vida, quem chora por ela? Quais vidas são passíveis de luto?

Essas reflexões estão presentes no livro “Quadros de Guerra”, no qual Butler tenta compreender como são construídos esses enquadramentos que fazem com que que algumas vidas sejam inteligíveis enquanto vidas e outras não. Para a autora, há uma distribuição desigual da condição de precariedade da existência: aquilo que deveria unir todas as vidas, que é a irremediável constatação de que elas findarão, é distribuído diferencialmente entre grupos e sujeitos específicos, com base em atravessamentos políticos, sociais e econômicos, de forma a operar exatamente o oposto, tornando algumas vidas mais precárias do que outras. A partir daí, torna-se impossível reconhecer essas vidas como vidas, já que a elas foi negada, ou reduzida, a condição de serem reconhecidas enquanto tal.

Sua proposta é questionar essa moldura, essa política de reconhecimento, para construir possibilidades de reconhecimento mais democráticas. Para ela, “questionar a moldura significa mostrar que ela nunca conteve de fato a cena a que se propunha ilustrar, que já havia algo de fora, que tornava o próprio sentido de dentro possível, reconhecível. A moldura nunca determinou realmente, de forma precisa o que vemos, pensamos, reconhecemos e apreendemos. Algo ultrapassa a moldura que atrapalha nosso senso de realidade; em outras palavras, algo acontece que não se ajusta à nossa compreensão estabelecida das coisas”.

Conheça também “Cidadã de segunda classe”, de Buchi Emecheta

“A tatuagem de pássaro” parece explicitar esse algo que ultrapassa a moldura. A obra de Dunya Mikhail, publicada originalmente em 2020, implode as molduras e enquadramentos com que nos habituamos a ver o “oriente médio” — esse amálgama irreconhecível e incompreensível do qual sabemos pouco ou quase nada, apenar repetindo aquilo que aparece nas molduras que nos foram apresentadas sobre a região. Mikhail busca esse algo que acontece “fora” dessa moldura e que, quando aparente, nos convoca a olhar para o quadro a partir de outra posição. Diante da impossibilidade de colocar a realidade apresentada dentro dos quadros que apresentam o Iraque pelas lentes norteamericanas, ocidental, capitalista, o livro embaralha nossa compreensão das coisas já estabelecidas.

Esse deslocamento é o empurrão necessário para que possamos sair do confortável lugar que torna o diferente um outro que nada me diz respeito para aceitar o convite de ir além do que nos foi dito até então sobre determinado contexto para, a partir da escuta atenta às dores e possibilidades deste outro, entendê-lo em sua diferença em busca de algum comum que nos conecte.

“A Tatuagem de pássaro” foi escrito a partir de outra obra de Mikhail, “The Beekeeper” (em tradução livre, “O apicultor”, mas a obra não está publicada em português), que reúne relatos orais de sobreviventes do sistemático sequestro de mulheres para trabalho escravo e sexual pelo chamado Estado Islâmico (EI), bem como de pessoas envolvidas em uma rede que atua para resgatar essas mulheres. A história parte da experiência da personagem Helin para apresentar o drama e o terror que viveram os iázidi quando o território do Iraque foi tomado pelo EI.

Os iázidi são um povo que vive principalmente no norte do Iraque e na Síria cuja cultura é marcada por práticas religiosas ligados ao zoroastrismo, que misturam elementos islâmicos, judaico-cristãos e pagãos. São predominantemente identificados como curdos, e muitos vivem em vilarejos e comunidades nas montanhas.

Em 2014, os iázidi foram vítimas de um genocídio cometido pelo Estado Islâmico, que justificou sua perseguição e assassinato pelas diferenças religiosas entre sua visão estreita (e deturpada) do islamismo e as práticas religiosas dos iázidi. Milhares de pessoas foram forçadas a se deslocar de suas terras e estima-se que mais de meio milhão de pessoas tenha se tornado refugiados. Alegando querer “salvar” este povo e colocá-lo nos trilhos da “religião correta”, o EI os obrigou a se converter ao islamismo em um contexto de violência brutal, no qual a única escolha era entre a conversão e o horror.

Enquanto os homens foram alvo de assassinatos e execuções sumárias, as mulheres foram vítimas de sequestros e estupros utilizados como armas de guerra. Inúmeras mulheres foram capturadas para serem vendidas a integrantes do Estado Islâmico como “esposas”.

Conhecemos Helin, a personagem principal do livro, quando ela já se encontra prisioneira, junto com outras mulheres. Pela narrativa, vê-se que aquele não é o início das violências que sofreu.

O silêncio era a terceira língua das prisioneiras, depois do árabe e do curdo.

A narrativa da brutalidade da violência física e sexual às quais Helin e outras prisioneiras estão submetidas é desoladora. O texto deixa ver a dor dessa personagem que vamos, aos poucos, conhecendo — e não poderia ser diferente, visto que a humilhação e a expectativa pela próxima violação imprimem uma devastadora experiência de desesperança.

Era uma manhã clara, mas o que significavam as manhãs claras para os prisioneiros? Clara ou não, qual a diferença?

Conforme vai sendo vendida para um e outro homem que a viola das mais diferentes maneiras, Helin se apega à lembrança de seu marido, Elias, e seus filhos. Ela não sabe seu paradeiro, nem como se encontram, mas sua lembrança é o que a permite sobreviver.

Para que possamos conhecer a história de Helin e Elias, a narrativa sai da brutalidade da violência do hoje para mergulhar na tranquilidade do passado, quando se conheceram, num dia em que Elias caçava um pássaro. Ao ver o pássaro, Helin solta o animal. Sua cultura, enquanto mulher que vive em um vilarejo em uma montanha próxima à divisa com a Síria, dita outras formas de o ser humano se relacionar com a natureza.

O encontro de Elias com Helin, nas circunstâncias como ocorreram, desperta dele, recém viúvo com um filho bebê, novas sensibilidades. E a partir deste encontro ele volta a visitar o vilarejo, estreitando os laços com Helin e sua família, especialmente após tornar-se um professor cuja tarefa é alfabetizar as pessoas do vilarejo que desejarem aprender as letras.

O amor de Helin e Elias é bonito e singelo, e, após páginas e mais páginas de terror, conhecer essa história de amor é um respiro de possível.

Olhou para as estrelas brilhantes no céu e pensou que pelo menos ele perderia peso ao andar até o vilarejo toda semana para dar aula. Viu uma esperança brilhar como uma estrela extra no céu. Imaginou Helin dormindo, então fechou as pálpebras para cobri-la.

Mas assim como a esperança é cotidianamente desafiada pela violência a permanecer, também nosso sentimento de alegria possível diante deste amor é posto à prova quando a história chega, finalmente, ao presente. Em uma cidade já assustada com a tomada de poder pelo EI, Elias, que trabalhava em uma revista, certo dia sai para trabalhar e não volta para casa. Angustiada e com uma bebê recém nascida de poucos dias, Helin decide sair em busca do marido. E é nesse momento que acaba por se tornar prisioneira.

Se, no começo da história, conhecíamos apenas as violências perpetradas contra Helin, agora nos são apresentadas as brutais experiências sofridas pelo restante de sua família, que não sabe se seu paradeiro e tenta encontrá-la; e a esperança que Helin tinha ao lembrar dos seus, no início do livro, ganhar ares quase surreais quando nós, leitores, acessamos informações às quais Helin não tinha acesso sobre o paradeiro e o sofrimento de seus familiares.

Laila notou que Helin fechava os olhos por longos períodos sem estar dormindo. Ela fazia isso diversas vezes durante o dia, sentada. Laila se perguntou se Helin estaria rezando em seu coração. Não quis interrompê-la, mas, se lhe perguntasse, Helin responderia que fazia isso porque via seus desaparecidos quando fechava os olhos.

Com sensibilidade e uma linguagem poética belíssima, Dunya Mikhail consegue dar corpo a relatos que jamais deveriam ter existido — mas existiram e, precisamente por isso, precisam ser contados. Helin e sua família e amigos tornam-se, de alguma forma, conhecidos nossos, de modo que sua dor é também um pouco nossa.

“A tatuagem de pássaro” é um livro imprescindível. Porque nos oferece chaves de leitura distintas para pensar a violência do Estado Islâmico, que não passam pela narrativa anti-árabe norteamericana que tem legitimado violações de diferentes ordens. Porque conta a história de um povo esquecido, cujo sofrimento e cuja potência não recebem por parte do mundo o reconhecimento devido.

Related posts

Novela de Thomas Mann: o fascismo é capaz de hipnotizar?

“Coração Satânico”, de William Hjortsberg: alguns anacronismos na eletrizante obra noir sobre identidade

A poesia de estreia arrebatadora de Enzo Peixoto: “Declaro-me: o sopro das rosas”