Pedro Lemebel: a “loca” da contracultura que rasga o conservadorismo com sua literatura

A literatura do Pedro Lemebel chegou até mim por um caminho afetivo: a Luisa, minha namorada, foi viajar pro Chile e eu pedi de presente um livro comprado na rua, numa feirinha. Ela me trouxe o romance Tengo Miedo Torero sem saber quem era Lemebel e qual sua importância na literatura do Chile. Eu, que estudo e me interesso por arte de contracultura acabei encontrando um dos maiores nomes da contracultura latina através da melhor via possível, talvez a que o Lemebel mais admiraria. Nem o intelecto nem a razão, mas a força política dos afetos.

Para quem não conhece Lemebel, é até difícil explicar. Uma bicha terceiro-mundista, como faz a edição recém-lançada pela Zahar, é uma boa tentativa, mas com Lemebel sempre vai ficar incompleto. Lemebel foi uma das forças mais revolucionárias na luta contra a ditadura de Pinochet, apresentou programas de rádio em que lia crônicas super potentes sobre o cotidiano chileno atravessado pela política, fez performances de visibilidade e contra o preconceito para com as pessoas vivendo com HIV, inventou uma performance chamada “Las yeguas del apocalipsis”, escreveu crônicas e romances, manifestos em que enfrentava a esquerda de farda.

Era uma bicha tão fluída como a água, não tinha lugares fixos, exercia forças masculinas e femininas simultaneamente ou, às vezes, deixava um lado predominar. Uma essência de ciborgue, como diria Dona Haraway, acreditava que podia sempre se montar, como o corpo fosse também uma ciência combinatória. Neste sentido, era, quando queria, também travesti, tendo inspirado figuras como o grande Paul Preciado.

Seria possível ficar listando o maremoto que foi Lemebel nas praias da cultura chilena. O mais importante, no entanto, está em dizer que chega ao Brasil, pelo menos de forma robusta, a primeira edição das crônicas de Lemebel, através da edição da Editora Zahar de Poco hombre: escritos de uma bicha terceiro-mundista, com organização do crítico espanhol Ignacio Echevarría e tradução da curitibana Mariana Sanchez.

Capa de Poco Hombre, de Pedro Lemebel

Para apresentar Lemebel para o público brasileiro, fiz uma entrevista com Mariana Sanchez, não só sobre os desafios da tradução, mas da tarefa e missão de trazer uma figura de Lemebel para o público brasileiro. Sanchez contou para o Jornal Nota um pouco sobre as metamorfoses de Lemebel e sua mais que insujeita e insubordinada literatura. Confira:

1- O Lemebel é uma das figuras artísticas mais importantes da América Latina, tanto com Las Yeguas del apocalipsis, com os programas de rádio e, claro, com sua literatura. Com o que o público brasileiro vai poder entrar em contato pela primeira vez com o lançamento de Poco Hombre?

Poco hombre: escritos de uma bicha terceiro-mundista é uma antologia de crônicas que perpassa toda a vasta produção do autor dentro deste gênero, do primeiro livro (La esquina es mi corazón, de 1995) ao último (Háblame de Amores, de 2012). Nesse sentido, não poderia haver melhor porta de entrada para a obra cronística de Lemebel, que no Brasil contava até agora com apenas uma breve compilação de 10 crônicas selecionadas e traduzidas por Alejandra Rojas, lançada em 2014 pela editora Cesárea (“Essa angústia louca de partir”). Em Poco hombre, são mais de 70 textos, formando um caleidoscópio extremamente rico dos temas sobre os quais Lemebel mais se debruçou ao longo da vida, dos anos pinochetistas à contracultura chilena dos anos 80 e 90, passando pelas vivências homossexuais e suas rondas noturnas em busca de sexo numa Santiago empobrecida.

A antologia foi publicada em 2013, quando Lemebel já enfrentava o câncer de laringe que o matou dois anos depois – aliás, o livro era também uma forma de arcar com os custos do tratamento, que incluía um aparelhinho portátil pelo qual ele podia falar numa voz metálica estranhíssima, e que reforçava o caráter performático de suas aparições públicas. O crítico espanhol Ignacio Echevarría, responsável pela organização e pelo prólogo, abre a edição justamente dizendo: “Acontece que, enquanto esta antologia estava sendo preparada, arrancaram a voz de Pedro Lemebel. Era para evitar males piores, mas o fato é que Lemebel, vítima de um câncer de laringe, teve sua voz arrancada, e é preciso se perguntar o que ele vai escrever, e como, daqui para a frente. Porque costuma-se pensar que os escritores escrevem em silêncio, a partir do silêncio, mas Lemebel escreve com a voz, pela voz, a partir da própria voz.”


2- Lemebel foi subversivo de muitas formas – no corpo, nas palavras, nos manifestos, na arte – e se tornou uma das maiores vozes de contracultura, uma “bicha terceiro mundista” num período muito duro que foi a ditadura chilena do Pinochet. Conta um pouco sobre Lemebel e como seus “Lemebéis” foram tratados na edição brasileira.

De fato Lemebel era muitos: o moleque pobre que morava com a família num barraco às margens imundas do Zanjón de la Agua, o amante das baladas românticas e da disco-music setentista, a “bichona” incansável faminta por sexo na madrugada, o ensaísta que denuncia as hipocrisias da sociedade chilena pós-golpe com seu olhar crítico e sua língua afiada, etc. Sobre esses desdobramentos de sua personalidade múltipla, um comentário: Lemebel costumava se autodefinir como uma “loca”, termo que, na edição brasileira, optamos por ampliar a partir de uma série de sinônimos, como bicha-louca, mona, biba, viada, maricona, bichona, travesti, trava, entre outros. Ao apostar na diversidade do nosso léxico, reforçamos também os muitos Lemebéis que existem em Pedro Lemebel.

Mariana Sanchez, tradutora de Pedro Lemebel


3- Lemebel chega no Brasil quase ao mesmo tempo em que o Roberto Piva, poeta paulista de contracultura, ganha uma edição completa pela Companhia das Letras. Por que você acha que essas vozes tão complexas e ambivalentes estão ressurgindo neste momento do país?

Nesse rol, daria para incluir ainda o filósofo espanhol e homem trans Paul Preciado, que chamava Lemebel de sua “mãe travesti” e “deusa trans andina”. O Brasil passou por um período trevoso, que começou com o golpe em 2016 e se acirrou no governo de Bolsonaro, do ponto de vista da perda de direitos e da amplificação das violências contra grupos minoritários. Acho que agora estamos vivendo um momento vibrante de (re)descoberta dessas vozes capazes de implodir (ou, no mínimo questionar) o heteropatriarcado e celebrar modos outros de vida, de pensamento, de literatura.

Pedro Lemebel



4- As crônicas de Poco Hombre tratam de quais temas? Eu conheço o De Perlas Y Cicatrizes em que ele vai versando sobre diversos assuntos da política e cultura chilena, mas com uma pegada que às vezes se aproxima do conto. Pode contar um pode sobre como é o livro formalmente?

Me adiantei e já contei um pouco na primeira pergunta :) O livro cobre todas as fases da produção cronística de Lemebel, mas não está construído cronologicamente, e sim por eixos temáticos divididos em cinco seções: Os Duendes da Noite; Fingir como se nada, sonhar como se nunca; Onde é que você estava?; Seu rouco riso louco; Chile mar e cueca; além de um preâmbulo e um epílogo. A edição também inclui um prólogo bastante esclarecedor do Ignacio Echevarría e um posfácio em que conto um pouco sobre os dilemas da tradução.

Performance Las Yeguas del Apocalipses


5- Imagino que traduzir Lemebel deve ter sido um desafio. Algumas de suas vozes e personagens se manifestam a partir daquilo que chamamos de “queer” ou de uma fluidez de gênero. Algumas são travestis, como La Loca de Tengo Miedo Torero e ele próprio usava os adjetivos no masculino, mas também se apropriava do feminino quando assim achava importante. O que foi desafiador e quais os cuidados que foram precisos tomar na tradução?

É verdade. Lemebel quase sempre usa o termo “travesti” no masculino – na tradução, ficou no feminino –, mas também se autointitulava uma “cantora, trapezista e índia pássara”, então a questão do gênero é muito fluida em Lemebel. Acho que as maiores complicações da tradução giraram em torno do estilo neobarroco e decididamente kitsch do autor, que não se furtava a metáforas sexuais, trocadilhos, piadas de duplo sentido e citações musicais. Lemebel gostava de desmontar e remontar as palavras, criando novos sentidos ou reforçando o peso político delas, e é claro que a tradução teve que entrar nesse jogo. Foi dureza, mas foi divertido!


6- Lemebel era uma figura imersa na esquerda chilena, mas muito crítica à esquerda tradicional que dizia nunca ter incluído figuras como ele que “nasciam com a asinha quebrada”. O que de Lemebel serve pode servir para uma esquerda brasileira atual?

Lemebel era muito crítico aos chamados esquerdomachos. Um exemplo é a crônica “Adeus ao Che”, que mostra o lado homofóbico e machista do revolucionário, com sua “metralhadora viril”. O autor também apontava o dedo para a “uísquerda”, que durante a abertura democrática voltou do exílio europeu para a América Latina arrotando caviar, e não aliviava nas críticas aos progressistas da elite cultural que flertavam com genocidas (vide a crônica “As orquídeas negras de Mariana Callejas”, sobre uma figura controversa do panorama literário chileno). Acho que uma boa lição de Lemebel para a esquerda brasileira atual seria não “barganhar sua bunda no parlamento”, para citar um trecho do famoso manifesto “Falo pela minha diferença”.


7- Pra finalizar, alguma previsão de outras obras dele chegando ao Brasil? Quem sabe o romance Tengo Miedo Torero, que já tem até filme na Amazon?

Sim, a Zahar também adquiriu os direitos de publicação do romance, mas este projeto deve ficar para o ano que vem.

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Sobre a tradutora:

Mariana Sanchez nasceu em Curitiba, é jornalista, tradutora e uma das coordenadoras da coleção Nos.Otras, da editora Relicário. Entre suas traduções estão os romances As primas, de Aurora Venturini (Fósforo, 2022), Salvatierra, de Pedro Mairal (Todavia, 2021), Sistema do tato, de Alejandra Costamagna (Moinhos, 2020) e Eisejuaz, de Sara Gallardo (Relicário, 2021), pelo qual foi finalista do prêmio Jabuti na categoria Tradução. Poco hombre: escritos de uma bicha terceiro-mundista, de Pedro Lemebel, tem lançamento previsto para 26/05/2023 pelo selo Zahar, da Companhia das Letras.

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