“O Livro dos Mortos”: Mutarelli e Hamlet ou os fantasmas também escrevem

Em O Livro dos Mortos, Lourenço Mutarelli escreveu o seu Hamlet, afinal “todo mundo merece ter um Hamlet na vida”.

Pensei nessa frase assim que fechei o livro e acredito que é a melhor maneira de começar uma resenha sobre “O livro dos mortos”, do quadrinhista que tem estado romancista Lourenço Mutarelli. Com essa frase eu quero dizer que todo escritor, cineasta, teatrólogo, enfim, todo artista – e porque não qualquer pessoa – merece ter uma obra na qual sua vida inteira esteja registrada não só biograficamente, mas, em especial, parabolicamente. Fellini tem 8 e meio, Machado tem Memorial de Aires, Tim Burton tem Peixe Grande, Goethe tem o Fausto e podemos ir citando eternamente.

Em “O livro dos mortos”, Mutarelli escreveu seu Hamlet. Ele chegou no ponto em que literatura e vida atingem seu ponto máximo. Isto é curioso porque Mutarelli é conhecido por se colocar muito em suas obras, principalmente na época das HQs, mas dessa vez ele chegou naquele ponto profundo: é a obra da sua vida.

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O livro conta a história de um sujeito chamado Pompeu Porfírio que trabalha contando história para pessoas que o contratam. Alguns delas, pelos menos os Mauros, os principais, pedem que ele encontre mulheres ideiais e conte sobre seus encontros com elas. O mundo de Pompeu vai se construindo através dessa contação de histórias incessantes, ao lado de uma memória que não para de tomar a frente para contar dados que Mutarelli assume nas notas que foram e são tal como suas memórias guardaram de sua vida.

O mundo, aos poucos, vai se tornando uma espécie de simulacro que reproduz esse microcosmo de Pompeu. As ruas e as cidades, por exemplo, começam a ganhar o nome de sua mãe Sondra Porfíria até que, aos poucos, o mundo inteira seja feito de Sondras Porfírias, ruas, cidades, estados, tudo.

Ao mesmo tempo em que o mundo vai ganhando os domínios da própria história, Pompeu passa por um processo kafkiano de ser denunciado de um crime cujo tribunal ele não reconhece as regras. Este evento, no entanto, mais uma vez se desdobra numa tentativa de investigação das culpas do passado para encontrar entre a culpa, a paranoia e o medo, o que configuraria um crime, um grave desvio.

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Lourenço Mutarelli

Ao lado disso, Pompeu fica diante de uma coisa só: um homem diante da morte e diante dos seus mortos e aí que o livro passa a retratar um evento que para Mutarelli é divisor das águas do tempo. O “livro dos mortos”, se revela como o resultado de um evento passado por Mutarelli: alguns anos atrás, o autor teve duas paradas cardíacas, ficou morto por minutos, mas foi ressuscitado.

Diante do retorno da morte, ele escreve com, para, por, diante e contra seus mortos. O problema é que nenhum dos seus mortos viu nada. A morte não lhe disse nada, então o que resta de vida precisou dizer, contar, lembrar e inventar.

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