Eu não costumo gostar de quem começa resenha com o significado de uma palavra no dicionário, mas dessa vez eu queria entender o quanto de uma palavra estava na palavra e o quanto estava no uso que se faz dela. A palavra é “viela”, termo utilizado por Wesley Barbosa no seu romance de estreia, “Viela Ensanguentada”, publicado em 2022 pela Editora Ficções.
Viela, a palavra, traz consigo a ideia de uma travessa ou de uma rua estreita, talvez o famoso “beco”, mas o que me interessou é que, para Wesley, a viela é mais. Pensando na “viela”, lembrei do “Poema do Beco”, do Manuel Bandeira, de A Estrela da Manhã (1936):
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
-O que vejo é o beco.
Ver o beco é ver o mundo encurtado. Na imagem presa. No entanto, a viela no romance de Wesley não é beco, é metonímia ou imagem sintética da vida de muitos jovens da periferia de nosso país. O interessante de pensar na viela como tal é que, mais do que este beco, a viela é também zona de fuga. A viela é um espaço que nos dá ideia de passagem, abertura, enquanto que o beco é, em geral, aquele lugar que a gente vê “sem saída”. Já a viela não, ela tem saída. Estreia, curta, mas tem. E é nesta viela que Wesley Barbosa está interessado.
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Sobre Viela Ensanguentada
“Viela Ensanguentada” conta a história de Mariano, um rapaz jovem de um bairro periférico que tem uma verdadeira paixão pelos livros. Ali na viela onde vive, ele pode acompanhar uma miniatura do mundo ao seu redor: a avó muito evangélica que vê na religião a única via para habitar este mundo difícil; sua mãe que trabalha e pouco pode ficar em casa; os rapazes da rua, Mosca Morta e Olho de Peixe, envolvidos com a venda de drogas e pequenos grandes delitos na região; Dandara, a jovem mulher que trabalha na biblioteca pública; o dono do ferro-velho, o motorista de ônibus, o dono do açougue e bem mais. Este passeio de figuras me lembrou, ainda, o livro O Beco do Pilão, do escritor egípcio Nahig Mahfuz, mais uma referência de uma leitura de beco ou de viela, ou ambas.
Mas enfim, Mariano é este jovem que faz pequenos trabalhos como catar papel, latinhas, cobre e ferro para vender no ferro velho. O objetivo é tentar levar uma vida justa e honesta, ainda que com dificuldades e, principalmente, ver no amor aos livros a possibilidade de escape, ou melhor, de ampliação do horizonte de sua vida. Enquanto a viela para a maioria das personagens é ensanguentada, para Mariano é repleta de histórias. Bastaria, então, lê-las como a um livro.
O que mais gosto dos escritos de Wesley Barbosa é que ele está imerso no que se poderia chamar de literatura marginal, ou seja, aquela que relata a experiência das vidas “a margem” do poder. Porém, Wesley escreve com gentileza, com tranquilidade, com a placidez que nos dá uma visão e imersão não apenas panorâmica, quase “drônica” da periferia, mas também singela. É interessante, principalmente, porque forma no mosaico desta literatura um ponto de equilíbrio entre poetas que denunciam, poetas que expõe realidades, poetas que tratam das agruras das desigualdades, poetas que tem raiva, poetas indignados com as violências cometidas pelo Estado. Wesley também faz isso, afinal como poderia não fazer, mas faz de um lugar bastante peculiar, que dá a ver indivíduos que nos afetuamos por suas qualidades, mas também pelos seus defeitos. Gente honestamente simples e complexa, mas também profundamente bonita, triste e real. Isso se dá, talvez, por conta de seus protagonistas estarem sempre atravessados pela arte, pelo amor aos livros. A arte, também, como um des-sufocamento.
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“Viela Ensanguentada” é o romance que dá a ver a viela para além do beco, para além da estreiteza. Uma viela que, apesar de ensanguentada, hoje, ainda assim, cria linhas de fuga, de mundos que existem e coexistem, mundos sofridos, mas em transformação. Mundos que não podemos ignorar, mas também não podemos sentenciar. Um baita romance de um escritor que admiro muito e acho que todo mundo deveria ler.
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