Os 10 melhores poemas de António Jacinto

Você já conhece os melhores poemas de António Jacinto? António Jacinto nasceu a 28 de setembro de 1924, em Luanda, e morreu em 23 de junho de 1991, em Lisboa. Usou também o pseudónimo de Orlando Távora, para assinar alguns contos. Fez o curso do liceu em Luanda e trabalhou como empregado de escritório. Foi fundador, com Viriato da Cruz, do muitíssimo efémero Partido Comunista Angolano (logo dissolvido no movimento nacionalista que ajudaram a formar).

Esteve preso, por atividades políticas “anti-coloniais”, de 1962 a 1972, a maior parte do tempo no Campo de Concentração de Tarrafal, em Cabo Verde. Não contando com os anos de prisão fora do seu país, viveu praticamente toda a sua vida em Luanda. Ainda antes da independência de Angola, dirigiu o Centro de Instrução Revolucionária do MPLA. Depois, foi Ministro da Cultura (1975-78) e membro do Comité Central do MPLA.

O NotaTerapia separou os 10 melhores poemas de António Jacinto:

Monangamba

Naquela roça que não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado,
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado!

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem trás pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de déndén?
Quem capina e em paga recebe desdém
fubá podre, peixe podre,
panos ruins, cinqüenta angolares
porrada se refilares?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
— Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter a barriga grande — ter dinheiro?
— Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
— Monangambéée…

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
— Monangambéée…

Uma quadra

Que dos céus as estrelas desçam esculpidas em mármore.
E se abatam em mim na dureza pétrea e existente;
E do chão abafado e maldito onde não desponta árvore
Crescerá num volume duro meu canto humano e quente.

Canção do Entardecer

(Cantiga de roda)

Ó pássaro traz-me o meu filho

que o sol vai desaparecendo

mualeba kuleba

pássaro que vais esvoaçando

com o sol que vai desaparecendo

longe, tão longe

Kumbi dia kinjila!

Desce dos ares, desce à terra

ave grande

traz-me o meu filho

são horas, o sol vai desaparecendo

mualeba kuleba.

Já trabalhei ó pássaro

já cansei

varri a casa

acendi o lume

cozinhei

já zuquei no meu pilão

traz-me já o meu filho ó pássaro

que o sol vai desaparecendo

Kumbi dia kinjila!

Ó pássaro
o sol vai morrendo
mualeba kuleba
e hoje ganhei o meu dia

já cansei

já capinei, lavrei

já fui acarretar água

tenho a casa limpa

recolhi a criação

cumpri os meus deveres

o sol vai morrendo

são horas de ir descansar

traz-me o meu filho ó pássaro

o kinjila ki-ngi-bekele mona!

Anda, dá-me já o meu filho

são horas

Kumbi dia kinjila

longe tão longe…

……………………………………………..

— minha negra, que pedes o filho ao pássaro

olha o teu homem

que vem cansado da tonga

dá-me um seio

tens dois — deixa ao teu filho o outro

que o sol já vai morrendo

mualeba kuleba

longe, tão longe

Kumbi dia kinjila!

Vadiagem

Naquela hora já noite

quando o vento nos traz mistérios a desvendar

musseque em fora fui passear as loucuras

com os rapazes das ilhas:

            Uma viola a tocar

             o Chico a cantar

            (que bem que canta o Chico!)

            e a noite quebrada na luz das nossas vozes

Vieram também, vieram também

cheirando a flor de mato

– cheiro gravido de terra fértil –

as moças das ilhas

                       sangue moço aquecendo

a Bebiana, a Teresa, a Carminda, a Maria.

             Uma viola a tocar

              o Chico a cantar

a vida aquecida com o sol esquecido

              a noite é caminho

caminho, caminho, tudo caminho serenamente negro

sangue fervendo

              cheiro bom a flor de mato

              a Maria a dançar

              (que bem que dança remexendo as ancas!)

E eu a querer, a querer a Maria

e ela sem se dar

               Vozes dolentes no ar

                a esconder os punhos cerrados

                alegria nas cordas da viola

                alegria nas cordas da garganta

                e os anseios libertados

                das cordas de nos amordaçar

Lua morna a cantar com a gente

as estrelas se namorando sem romantismo

na praia da Boavista

                 o mar ronronante a nos incitar

Todos cantando certezas

a Maria a bailar se aproximando

                sangue a pulsar

                sangue a pulsar

                mocidade correndo

                a vida

                peito com peito

                beijos e beijos

                as vozes cada vez mais bebadas de liberdade

a Maria se chegando

a Maria se entregando

                 Uma viola a tocar

                 e a noite quebrada na luz do nosso amor…

(Poemas, 1961)

Bailarina negra

A noite
(Uma trompete, uma trompete)
fica no jazz

A noite
Sempre a noite
Sempre a indissolúvel noite
Sempre a trompete
Sempre a trépida trompete
Sempre o jazz
Sempre o xinguilante jazz

Um perfume de vida
esvoaça
adjaz
Serpente cabriolante
na ave-gesto da tua negra mão

Amor,
Vênus de quantas áfricas há,
vibrante e tonto, o ritmo no longe
preênsil endoudece

Amor
ritmo negro
no teu corpo negro
e os teus olhos
negros também
nos meus
são tantãs de fogo
amor.

Carta dum contratado

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que dissesse
Deste anseio
De te ver
Deste receio
De te perder
Deste mais que bem querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue…

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta de confidências íntimas,
Uma carta de lembranças de ti,
De ti
Dos teus lábios vermelhos como tacula
Dos teus cabelos negros como diloa
Dos teus olhos doces como macongue
Dos teus seios duros como maboque
Do teu andar de onça
E dos teus carinhos
Que maiores não encontrei por ai…

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Que recordasse nossos dias na capopa
Nossas noites perdidas no capim
Que recordasse a sombra que nos caia dos jambos
O luar que se coava das palmeiras sem fim
Que recordasse a loucura
Da nossa paixão
E a amargura da nossa separação…

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Que a não lesses sem suspirar
Que a escondesses de papai Bombo
Que a sonegasses a mamãe Kiesa
Que a relesses sem a frieza
Do esquecimento
Uma carta que em todo o Kilombo
Outra a ela não tivesse merecimento…

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que ta levasse o vento que passa
Uma carta que os cajus e cafeeiros
Que as hienas e palancas que os jacarés e bagres
Pudessem entender
Para que se o vento a perdesse no caminho
Os bichos e plantas
Compadecidos de nosso pungente sofrer
De canto em canto
De lamento em lamento
De farfalhar em farfalhar
Te levassem puras e quentes
As palavras ardentes
As palavras magoadas da minha carta
Que eu queria escrever-te amor

Eu queria escrever-te uma carta…

Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu – Oh! Desespero! – não sei escrever também!

Declaração

As aves, como voam livremente
num voar de desafio!
Eu te escrevo, meu amor,
num escrever de libertção.

Tantas, tantas coisas comigo
adentro do coração
que só escrevendo as liberto
destas grades sem limitação.
Que não se frustre o sentimento
de o guardar em segredo
como liones, correm as águas do rio!
corram límpidos amores sem medo.

Ei-lo que to apresento
puro e simples – o amor
que vive e cresce ao momento
em que fecunda cada flor.

O meu escrever-te é
realização de cada instante
germine a semente, e rompa o fruto
da Mãe-Terra fertilizante.

Era uma vez

Vovo Bartolomé, ao sol que se coava da mulembeira
por sobre a entrada da casa de chapa,
enlanguescido em carcomida cadeira
vivia
– relembrando-a –
a história de Teresa mulata

Teresa Mulata!

essa mulata Teresa
tirada lá do sobrado
por um preto d’Ambaca
bem vestido,
bem falante,
escrevendo que nem nos livros!

Teresa Mulata
– alumbramento de muito moço –
pegada por um pobre d’Ambaca
fez passar muitas conversas
andou na boca de donos e donas…

Quê da mulata Teresa?

A história da Teresa mulata…
Hum…
Vovo Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu
o sol coando das mulembeiras veio brincar com as moscas nos lábios
ressequidos que sorriem
Chiu! Vovo tá dormindo!
O moço d’Ambaca sonhando…

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Castigo pró combioio malandro

Comboio malandro
O fogo que sai no corpo dele
Vai no capim e queima
Vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho

Se na lavra do milho tem pacacas
Eu faço armadilhas no chão,
Se na lavra tem kiombos
Eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles
Mas se vai lá fogo do malandro
– Deixa!-
Uéuéué
Te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Só fica fumo,
Muito fumo mesmo.

Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
E os brancos chamar os pretos p´ra empurrar
Eu vou
Mas não empurro
– Nem com chicote –
Finjo só que faço força
Aka!

Comboio malandro
Você vai ver só o castigo
Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem

o comboio malandro
passa

Nas janelas muita gente
ai bo viaje
adeujo homéé
n’ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender

hii hii hii

aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
tem outro
igual como este de bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje
mas o preto não morre
canta como é criança
“Mulonde iá késsua uádibalé
uádibalé uádibalé…'”

esse comboio malandro
sòzinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Vai dormir mesmo no meio do caminho.

Poema da alienação

Não é este ainda o meu poema

o poema da minha alma e do meu sangue

não

Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema

o grande poema que sinto já circular em mim

O meu poema anda por aí vadio

no mato ou na cidade

na voz do vento

no marulhar do mar

no Gesto e no Ser

O meu poema anda por aí fora

envolto em panos garridos

vendendo-se

vendendo

“ma limonje ma limonjééé”

O meu poema corre nas ruas

com um quibalo podre à cabeça

oferecendo-se

oferecendo

“carapau sardinha matona

ji ferrera ji ferrerééé…”

O meu poema calcorreia ruas

“olha a probíncia”  “diááário”

e nenhum jornal traz ainda

o meu poema

O meu poema entra nos cafés

“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”

e a roda do meu poema

gira que gira

volta que volta

nunca muda

“amanhã anda a roda

amanhã anda a roda”

O meu poema vem do Musseque

ao sábado traz a roupa

à segunda leva a roupa

ao sábado entrega a roupa e entrega-se

à segunda entrega-se e leva a roupa

O meu poema está na aflição

da filha da lavadeira

esquiva

no quarto fechado

do patrão nuinho a passear

a fazer apetite a querer violar

O meu poema é quitata

no Musseque à porta caída duma cubata

“remexe remexe

paga dinheiro

vem dormir comigo”

O meu poema joga a bola despreocupado

no grupo onde todo o mundo é criado

e grita

“obeçaite golo golo”

O meu poema é contratado

anda nos cafezais a trabalhar

o contrato é um fardo

que custa a carregar

“monangambééé”

O meu poema anda descalço na rua

O meu poema carrega sacos no porto

enche porões

esvazia porões

e arranja força cantando

“tué tué tué trr

arrimbuim puim puim”

O meu poema vai nas corda

encontrou sipaio

tinha imposto, o patrão

esqueceu assinar o cartão

vai na estrada

cabelo cortado

“cabeça rapada

galinha assada

ó Zé”

picareta que pesa

chicote que canta

O meu poema anda na praça trabalha na cozinha

vai à oficina

enche a taberna e a cadeia

é pobre roto e sujo

vive na noite da ignorância

o meu poema nada sabe de si

nem sabe pedi

O meu poema foi feito para se dar

para se entregar

sem nada exigir

Mas o meu poema não é fatalista

o meu poema é um poema que já quer

e já sabe

o meu poema sou eu-branco

montado em mim-preto

a cavalgar pela vida.

Fonte:
https://www.escritas.org/pt/antonio-jacinto
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/antonio_jacinto.html

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