O escritor português José Saramago publicou, em 1999, o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, em que narra a história de Jesus Cristo. O filho de Deus, no livro, é retratado como um homem que recebe a trágica missão de ser assassinado pelo próprio pai. Ateu convicto, Saramago escreveu esta obra como provocação às interferências que as igrejas fazem nas vidas das pessoas a partir de interpretações dos evangelhos bíblicos.
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Um dos trechos mais bonitos do livro é quando ele relata a morte de Jesus. Confira:
“Disseram os soldados a Jesus que se deitasse, e ele deitou-se, puseram-lhe os braços abertos sobre o patíbulo, e quando o primeiro cravo, sob a bruta pancada do martelo, lhe perfurou o pulso pelo intervalo entre os dois ossos, o tempo fugiu para trás numa vertigem instantânea, e Jesus sentiu a dor como seu pai a sentiu, viu-se a si mesmo como o tinha visto a ele, crucificado em Séforis, depois o outro pulso, e logo a primeira dilaceração das carnes repuxadas quando o patíbulo começou a ser içado aos sacões para o alto da cruz, todo o seu peso suspenso dos frágeis ossos, e foi como um alívio quando lhe empurraram as pernas para cima e um terceiro cravo lhe atravessou os calcanhares, agora não há mais nada a fazer, é só esperar a morte. Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.”
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Fonte:
https://www.academia.edu/40077749/O_EVANGELHO_SEGUNDO_JESUS_CRISTO_Jos%C3%A9_Saramago