Os 10 melhores poemas de Lawrence Ferlinghetti

Você conhece os melhores poemas de Lawrence Ferlinghetti? Ferlinghetti é um dos maiores poetas dos últimos anos. Pertencente ao grupo conhecido como “geração beat”, ele foi responsável por acolher, publicar e vender muitos dos poetas através de sua livraria a City Of Lights. Nascido em 1919, ele foi um dos últimos poetas beats a nos deixar, 101 anos, logo após completar sem centenário. Sendo Ferlinghetti considerado, por vezes um anarquista, por vezes um social-democrata, é comum à sua poesia os temas sociais e políticos, embora retratados de forma muito profunda e artística, explorando a função poética da linguagem.

Seu livro mais conhecido é A Coney Island of the mind. Emprestando a plasticidade da pintura, seus poemas, apesar de forte influência surrealista, permitem a visualização de cenas delicadas, via de regra cheias de jogos de luz e cor. A delicadeza de seus poemas lembra um pouco os versos de Apollinaire, inclusive pelo ritmo normalmente melodioso, mas alternando versos longos e curtos, lembrando as modulações de ritmo do be bop. Estes, na maioria, são distribuídos de forma não-linear, não se colocando um imediatamente abaixo do outro. Em outros poemas do livro, a cadência dos versos muitos longos ou apenas mais regulares em termos de extensão e alinhamento (comuns em outras obras do autor) lembra a de Walt Whitman, ou a de um RAP.

Veja também: As 10 melhores frases de 7 Dias na Nicarágua Libre, de Lawrence Ferlinghetti

O NotaTerapia separou os 10 melhores poemas de Lawrence Ferlinghetti. Confira:

Utilidades da poesia

Então, para que serve a poesia nesses nossos dias?
Qual seu uso? Qual sua utilidade?
Nesses dias e noites da Era do Capocalipse
em que a poesia é o asfalto
das estradas dos exércitos noturnos
como naquele paraíso de palmeiras no norte da Nicarágua
onde promessas são feitas nas plazas
e desfeitas nas quebradas
ou nos campos verdíssimos
da Estação de Armas Navais de Concord
onde trens blindados esmagam manifestantes verdes
onde a poesia se faz importante pela ausência
ausência de pássaros na paisagem de verão
ausência de amor nas coxas da meia-noite
ausência de luz ao meio-dia
na Casa (não tão) Branca
Pois mesmo a poesia ruim é importante
por aquilo que não diz
por aquilo que abandona
Que dizer do sol escorrendo
pela pele da manhã
das noites brancas e das bocas sedentas
lábios ululando Lulu sem parar
e dos seres alados que cantam
e dos gritos distantes numa praia ao anoitecer
e da luz jamais vista em terra ou mar
e das cavernas descobertas pelo homem
onde corriam rios sagrados
junto às cidades costeiras
onde caminhamos distraídos
intensamente comovidos
com o louco espetáculo da existência
todos esses animais tagarelas sobre rodas
heróis e heroínas com mil olhos
com corações corajosos e superalmas ocultas
nem aí para mitos
(Por uma vida sem mitos!
gritou Joseph Campbell
e se mandou de barco para o Havaí)
sempre impressionados por eu insistir
com esses aprumados bípedes de cara lisa
esses atores frementes
pálidos ídolos nas ruas noturnas
dançarinos extáticos no pó da Last Waltz
nesse tempo de engarrafamentos da Era do Capocalipse
onde a voz do poeta soa distante
a voz da Quarta Pessoa do Singular
a voz dentro da voz da tartaruga
a face atrás da face da raça
letras de luz na página da noite
a ávida voz da vida como a escutara Whitman
um leve riso selvagem
(quiçá a libertemos
do editor de texto da mente!)
E eu sou o repórter diário
de outro planeta
redigindo a história decadente
do Que Quando Onde Como e Por quê
dessa espantosa vida aqui
e dos estranhos palhaços que governam
com os cotovelos no parapeito
das demoníacas aterrorizantes fábricas
lançando suas sombras entrevadas
na grande sombra da Terra
no fim do tempo não visto
no supremo haxixe do nosso sonho

Nascer do sol, Bolinas

Este coraçãozinho que recorda

                              cada mínima coisa

        começa o dia

                            no mais das vezes

                                      tentando cantar algum

                                              verso ensolarado


Quanta insolência, quanta audácia

                               em face de tudo!

Contudo cantarei ao sol

                                   pra começar –

Quanta presunção, quanta perversão

                                  tomar por canção os gorjeios

                                      que talvez sejam mesmo

                                            gritos de horror!

        
Como se nossa vida

               como se toda vida

                       não fosse uma tragédia

                             embora tudo seja sumamente belo

         Como se nossa vida

                       não fosse demasiado variada

                                 para transformar tudo em litania –


Oh flauta bêbada

         Oh boca de Ouropel

                                        cante uma canção louca

                                                                    para salvar-nos

Olho e peito abertos (1973)

Tradução de Nelson Ascher

Paradoxo de Olbers

E então ouvi o erudito astrônomo

                         chamado Heinrich Olbers

    falando a nós de um século distante

       dizendo que ele observava a olho  nu

                o céu e constatava que havia

                            umas poucas estrelas mais próximas

    e quanto mais longe olhava

                            mais estrelas havia

         e um número infinito de aglomerados estelares

               em infinidades de Vias Lácteas & nebulosas


De modo que se deduz

             que nas distâncias infinitas

                               deve haver um lugar

                                   tem que haver um lugar

                                         onde tudo é luz

    e a luz que vem do lugar elevado

                                          onde tudo é luz

               ainda não teve tempo de chegar aqui

                   e é por isso que ainda temos noite


Mas  quando essa luz por fim chegar

              quando ela por fim chegar aqui

                         na parte do dia que chamamos Noite

                             o céu será branco

                     com pontinhos pretos

                        furinhos pretos

                              onde antes ficavam as estrelas

E então naquele lugar tão

                          simbólico e poético

                                          em que viveremos

        seremos nós as nossas verdadeiras sombras

                     e nossa própria iluminação

                                                           na terra crepuscular

Quem somos nós agora (1976)

Tradução de Paulo Henriques Britto

Em matas pelas quais muitos rios…

Em matas pelas quais muitos rios
correm entre morros erectos
e em campos da nossa infância
onde o arco-íris se mistura na memória com a palha
se bem que os ‘campos’ em questão fossem ruas
vejo de novo nascer tantas manhãs assim
quando cada coisa viva
lança na eternidade sua sombra
e a luz que dura o dia todo
é a de desde cedo
com suas sombras sagazes salientando
um paraíso
que nem entrara nos meus sonhos nem
no raciocínio a pensar
nesse dia de hoje sem barba feita
e com essas gralhas zombeteiras
que se erguem sobre árvores secas
grasnam e gritam
questionam sempre alguma
primavera e coisa.

Ferlinghetti. Via: Reprodução Redes Sociais

Dicionários de luz

O sol o sol
           vem dobrando a esquina
                      como um velho cavaleiro brilhante
                                            galopando pela paisagem
                                               nos cavalos da manhã

                      E sacudindo sua lança sobre nós
                                 em transe noturno
                                            nos acorda para falar ou cantar
                                                       para banir a morte e a escuridão

E cada corcel uma palavra
                      cada verbo um garanhão
                                 erguido contra toda ignorância

Radicais indomáveis desenfreados
           em dicionários de luz

O mundo é um ótimo lugar

       O mundo é um ótimo lugar

                                                   pra se nascer

se não te importa que a felicidade

                                                 nem sempre tenha muita graça

     se não te importa um quê de inferno

                                                    de quando em quando

                 justo quando tudo vai bem

                                      pois nem mesmo nos céus

                              se canta o

                                                  tempo todo

          
O mundo é um ótimo lugar

                                                   pra se nascer

se não te importa que alguns morram

                                                      o tempo todo

                   ou sofram só de fome

                                                  parte do tempo

           o que não é tão mau assim

                                                 se não é com você


Ah o mundo é um ótimo lugar

                                             pra se nascer

         se não te importam

                                             algumas mentes mortas

                   nos postos mais altos

                                                  ou uma bomba ou duas

         de quando em quando

                                            nas suas caras pasmas

         ou tais outras inconveniências

                                                        que vitimam a nossa

                     sociedade Marca Registrada

                                               com distinção de seus homens

                e seus homens de extinção

                                                        e seus padres

                           e outros patrulheiros

                                                      e suas várias segregações

          e investigações parlamentares

                                                       e outras prisões

                          de ventre que nosso torpe

                                                               corpo herda

       
Sim o mundo é o melhor dos lugares

                                             para tantas coisas como

        encenar diversão

                                 e encenar amor

e encenar tristeza

               e cantar baixarias e se inspirar

        e dar umas voltas

                                  olhando de tudo

                                                  e cheirando flores

       e cutucando estátuas

                                      e até pensando

                                                      e beijando as pessoas e

              fazendo filhos e usando calças

                                                            e acenando chapéus e

                                               dançando

                                               e nadando nos rios durante

                                                              piqueniques

                                                                      no meio do verão

                                       e no sentido amplo

                                                                  “vivendo até o fundo”


Sim

     mas bem no meio disso chega

                                                  então sorrindo o

                                          agente funerário

Retratos do mundo passado (1955)

Tradução de Nelson Ascher

Veja também: Os 10 melhores poemas de Roberto Piva

Instruções para pintores & poetas

Perguntei a cem pintores e a cem poetas
como pintar a luz do sol
no rosto da vida
As respostas foram ambíguas e ingênuas
como se estivessem guardando segredos comerciais
Entretanto, me parece que
tudo que você tem que fazer
é criar o mundo inteiro
e toda a humanidade
como uma espécie de obra de arte
uma obra de arte site-specific
um projeto de arte do deus da luz
toda a Terra e tudo o que há nela
pintado com luz

E a primeira coisa a se fazer
é pintar algo pós-moderno
E, depois, pintar a si mesmo
em cores verdadeiras
em cores primárias
como vocês as vê
(sem cal)
pinte-se como você se vê
sem maquiagem
sem máscaras
Depois, pinte suas pessoas e animais favoritos
com seu pincel cheio de luz
E certifique-se de que a perspectiva está correta
E não finja
pois uma linha falsa leva a outra

E então pinte altas colinas
quando tocadas pela primeira vez pelo sol
em uma manhã de outono
Com a espátula
coloque
as folhas amarelas de cádmio
as folhas ocres
as folhas de vermelhão
de um outono da Nova Inglaterra
E pinte a luz fantasma das noites de verão
e a luz do sol da meia-noite
que é a luz da lua
E não pinte as sombras feitas pela luz

pois sem chiaroscuro terá imagens superficiais
Então pinte também todos os cantos escuros
de todo o mundo
todos os lugares escondidos e corações e mentes
que a luz jamais alcança
todas as cavernas de ignorância e medo
a fossa do desespero
as lamas do desânimo
e escreva bem claramente
“Deixai todo desespero, vós que entrais”

E não se esqueça de pintar
todos aqueles que viveram suas vidas
como portadores de luz
Pinte seus olhos
e os olhos de cada animal
e os olhos de belas mulheres
mais conhecidas pela perfeição de seus seios
e os olhos de homens e mulheres
conhecidos apenas pela luz de suas mentes
Pinte a luz de seus olhos
a luz do riso iluminado pelo sol
a canção dos olhos
a canção dos pássaros em voo

E lembre-se de que a luz é interior
em qualquer lugar
e você deve pintar de dentro
Comece com pureza
com branco puro
o branco puro do gesso
o branco puro do cádmio branco
o branco puro do flake white
a tela pura e virgem
a vida pura, início de todos nós

Turner pintou a luz do sol
com têmpera a ovo
(que se mostrou instável)
e Van Gogh fez o mesmo com loucura
e sangue de sua orelha
(também instável)
e os impressionistas também
por jamais usar preto
e os expressionistas abstratos também
com pintura de casa branca
Mas você pode fazer isso com o pigmento puro
(se conseguir descobrir a fórmula)
de sua própria e verdadeira luz
mas antes de dar a primeira pincelada
na tela virgem
lembre de sua fragilidade
a extrema fragilidade da vida
e lembre sua inocência
sua inocência original
antes da primeira pincelada

Ou talvez nem comece
E deixe a luz atravessar
a luz interna da tela
a luz interna dos modelos
nos estudos da vida
a luz interior de todos
Deixe tudo fluir
como um pentimento
a luz pintada
a vida pintada
inúmeras vezes
Deixe tudo emergir
a imagem pintada
da vida primitiva na terra

E quando terminar sua pintura
afaste-se atônito
afaste-se e observe
a vida que criou na terra
a vida iluminada na terra
você criou
um admirável mundo novo

Cavalos ao amanhecer

Os cavalos os cavalos selvagens ao amanhecer

como numa aquarela de Ben Shahn

vivos em plena campina

no planalto ao longe

eles galopam

eles bufam

eles trovejam ao longe

seus cascos pequeninos

provocam pequenos trovões

insistentemente

como martelos de madeira batendo

num tambor distante

O sol ruge &

joga as sombras dos cavalos

pra fora da noite

Ecológio Noroeste (1978)

Tradução de Paulo Henriques Britto

Tem vez durante a eternidade

                   Tem vez durante a eternidade

                                                              uns caras aparecem

e um deles

                que já pinta bem tarde

                                                 acontece de ser um carpinteiro

       de um lugar careta

                                  como a Galileia

          e ele começa a ulular

                                          e clamar que ele é o peixinho

               daquele que fez o céu

                                               e a terra

                                                          e que o cara

                         que realmente estava na nossa

                                                       é o Pai dele

        
Além disso

              ele acrescenta

                                   Tá tudo escrito

                                            nuns pergaminhos enrolados

         que alguns eleitos

                   deixaram lá pelo Mar Morto algum lugar

                   faz muito tempo

                                            e que vocês não vão achar mesmo

         em menos de uns dois mil anos

                                                  ou pelo menos

            novecentos e quarenta e sete

                                                      deles

                            para ser exato

                                                e nem assim

ninguém acredita mesmo neles

                                             ou em mim

                                                             nesse assunto


Você está com febre

                              dizem a ele

E o congelam

Eles o estendem na Árvore até ele esfriar

         E todo mundo depois disso

                                         está sempre fazendo modelos

                          dessa Árvore

                                               com Ele pregado

e sempre repetindo o nome Dele

                              e pedindo pra Ele descer

                           e entrar no seu conjunto

             já que ele é O cara quente

                                           o que tem que mandar ver

         senão nada feito

         Só que ele não desce

                                        da Sua Árvore


Lá está ele

                em Sua Árvore

Bem petrificado

                                e frio pra danar

                                                      e ainda por cima

         conforme um círculo

                                 das últimas notícias internacionais

vindas das fontes suspeitas de sempre

                                                        realmente morto

Uma Coney Island da mente (1958)

Tradução de Paulo Leminski

Fonte:
http://pordiaumpoema.blogspot.com/2013/10/um-parque-de-diversoes-da-cabeca.html
https://revistarosa.com/3/lawrence-ferlinghetti-poemas
http://ermiracultura.com.br/2021/06/13/cinco-poemas-de-lawrence-ferlinghetti/

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