Em “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, a escritora espanhola Rosa Montero cruza o seu luto pela perda do marido e o luto e a vida da cientista Marie Curie.
Tenho um fascínio por títulos de livros bonitos. Se, pra algumas pessoas, é a capa o que mais chama a atenção em um livro, pra mim é o título. Há livros que sei que preciso ler, porque seus nomes me chamam; fico refém deles — não tenho escolha se não lê-los.
Foi por isso que este foi o livro escolhido para representar a Espanha. Pesquisando sobre escritoras espanholas, me deparei com Rosa Montero. Achava que leria “A Louca da Casa”, outro livro da autora, mas aí “A ridícula ideia de nunca mais te ver” apareceu diante dos meus olhos e foi impossível escolher qualquer outro livro.
“Os livros nascem de um germe ínfimo, um ovinho minúsculo, uma frase, uma imagem, uma intuição; e crescem como zigotos, organicamente, célula a célula, se diferenciando em tecidos e estruturas cada vez mais complexas, até chegar a se converter em uma criatura completa e frequentemente inesperada.”
Rosa Montero perdeu seu companheiro Pablo, com quem dividiu a vida por 21 anos, em 2009. Ele morreu de câncer, após meses de sofrimento. Buscando entender como lidar com o luto, meio sem querer encontrou nos diários pessoais de Marie Curie, cientista que descobriu o polônio e o rádio, um modo possível de falar dessa perda. É que Madame Curie também perdeu seu marido, Pierre Curie, que foi atropelado, na França, em 1906. As importantes aproximações entre aquilo que Marie descrevia em seu diário e o que sentia Rosa desde a perda de Pablo permitiram que “A ridícula ideia de nunca mais te ver” nascesse.
“A Morte joga conosco um jogo de esconde-esconde, esse jogo no qual um menino conta com a cara virada para a parede e os outros tentam chegar e tocar o muro sem que o menino os veja enquanto se movem. Pois bem, com a Morte acontece o mesmo. Entramos, saímos, amamos, odiamos, trabalhamos, dormimos; ou seja, passamos a vida contando como o menino do jogo, entretidos ou atordoados, sem pensar que nossa existência tem um fim. Mas de vez em quando nos lembramos de que somos mortais e então olhamos para trás, sobressaltados, e ali está ela, sorrindo, quietinha, como se não tivesse se movido, mas mais perto, um pouquinho mais perto de nós. E assim, cada vez que nos despistamos e nos ocupamos de outras coisas, a Morte aproveita para dar um salto e se aproximar. Até que chega um momento em que, sem advertência, esgotamos nosso tempo; e sentimos o alento frio da Morte no cangote e, um instante depois, sem sequer considerarmos olhar de novo para trás, sua garra toca nossa parede e somos seus.”
Há muitas coincidências que unem vidas, às vezes até mesmo sem que as pessoas envolvidas saibam. Mas basta que alguém identifique essas coincidências para se dar conta de que falar da vida de alguém é, em grande medida, falar da nossa própria vida. Rosa Montero afirma isso com todas as letras, quando se debruça sobre os caminhos “ambíguos e pantanosos” que unem relatos autobiográficos a textos ficcionais para “manejar a substância sempre radioativa do real”: “poder chegar a analisar a própria vida como se estivesse falando da de outro”.
Assim, o que Curie escreve em seu diário para Pierre é em alguma medida aqui que Rosa escreve neste livro, se não para Pablo, tendo ele nas entrelinhas de cada parágrafo. Mas a dor de Curie não é a dor de Montero, já que ambas souberam, cada uma a seu tempo, que o luto é algo intensamente pessoal e com múltiplas faces e formas; o que as une não é o modo como enlutam seus maridos, mas aquilo que a experiência do luto produz em ambas enquanto uma espécie de aprendizagem sobre a vida.
“Mas já digo que a recuperação não existe: não é possível voltar a ser quem era. Existe a reinvenção, e não é pouca coisa. Com sorte, pode ser que consiga reinventar-se melhor que antes. Afinal de contas, agora você sabe mais.”
Este post sobre Rosa Montero faz parte do projeto Mulheres do Mundo – uma escritora de cada país. Clique AQUI para conhecer outras autoras do projeto!
Essa é uma das funções desse livro: pela transposição das vidas de Montero e Curie, naquilo que as aproxima e as distancia, a primeira caminha pelos becos escuros do luto. Essa é, inclusive, a descrição da orelha do livro. Há momentos, no entanto, que esta proposta parece ficar um pouco deixada de lado, porque Rosa dedica um tempo imenso do livro para apresentar tanto os fantásticos quanto os ordinários momentos da vida de Marie que forjaram a complexa persona que foi Madame Curie.
E ao acompanhar a história de Curie, através da leitura de inúmeras biografias escritas sobre ela, além de seu diário pessoal, Rosa Montero se aventura a questionar o “lugar sem lugar” da mulher na sociedade. Ainda que engajada socialmente, Marie Curie nunca discutiu muito a respeito dos desafios pelos quais passou por ser uma mulher em um meio majoritariamente masculino. Mesmo tendo sido colocada no centro de escândalos que dissecaram sua vida privada no jornal de maior circulação da época, mesmo tendo recebido seu primeiro Nobel apenas depois de seu marido ter requerido a inserção de seu nome como colaboradora da descoberta, a questão de gênero pouco foi apontada por Curie em seus diários e escritas.
Mas a leitura de sua vida evidencia os modos como o machismo e a desigualdade entre homens e mulheres atravessou sua vida pública e privada. E a partir dessa constatação, com uso de uma ironia quase sempre acertada, Rosa Montero busca discutir os modos como os estereótipos e papéis de gênero atravessam as vidas de mulheres como Curie e também de mulheres como nós, hoje. E mesmo que ela parta de algumas percepções um pouco cristalizadas, apressadas e até mesmo generalizadas demais sobre homens e mulheres, nos convoca a refletir, também, acerca das pequenas mortes cotidianas que podem cercar as trajetórias de mulheres.
“Me pergunto quantas Manyas [nome de batismo de Marie] haverão se perdido de maneira parecida pelo caminho… quantas possíveis pintoras, escritoras, engenheiras, inventoras, exploradoras, escultoras, doutoras em medicina, geólogas, geógrafas, astrônomas, historiadoras, antropólogas… quantas outras maravilhosas mulheres radioativas não chegaram jamais a poder irradiar?”
Escavando os buracos produzidos pela morte, Rosa Montero acaba se deparando com a inseparabilidade entre a dor e o amor. “Nem tudo é horrível na morte, ainda que pareça mentira”. Afinal, a morte nos dói mais profundamente quando quem morre é alguém a quem amamos — isto creio que esteja claro a todos nós.
“Em algum romance, escrevi que o amor consiste em encontrar alguém com quem compartilhar nossas rarezas”.
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Marie Curie, em seu diário, escreve diretamente a Pierre. Escreve para ele para que possa dizê-lo aquilo que não foi dito, ou quer deveria ter continuado a ser dito. E quando narra a dor de sua perda, a consternação com que recebeu a notícia de que ele havia morrido, narra também belas memórias de amor e companheirismo que povoaram as vidas de ambos. Rosa Montero, imersa nesta mesma nuvem em que coexistem a lembrança do amor e a raiva ou o medo de que a dor desbote essas boas lembranças, também aproxima os mais bonitos momentos que viveu ao lado de Pablo aos mais duros deles, quando a doença já nublava até mesmo sua memória.
“Sim, há que se fazer algo com a morte. Há que se fazer algo com os mortos. Há que se colocar flores. E falar com eles. E dizer que os ama e que sempre os amou. Melhor dizer ao vivo; mas, se não, também pode ser dito depois.”
Quando comecei a ler esse livro, achei que não ia gostar dele. Me esforcei para continuar para além do segundo capítulo, porque me parecia que o livro poderia tomar um tom de autoajuda que me desagrada. Foi só da metade para o fim que me dei conta de que a beleza desse livro, para esse projeto, está no fato de que ele permite adentrar múltiplas camadas narrativas de mulheres sobre mulheres. Minha ideia, quando comecei esse projeto, era conhecer o mundo através do olhar de mulheres sobre as muitas partes desse mundo. O que “A ridícula ideia de não voltar a te ver” faz é possibilitar a leitura da vida de Marie Curie através da leitura que Rosa Montero faz delas. Mulheres lendo mulheres, relendo mulheres, recriando essas mulheres — outras e elas mesmas — diante de suas próprias experiências — usar a arte, a literatura, para ter pequenos vislumbres daquilo que é o mundo, a partir do pequeno mundo de alguém.
“A literatura, ou a arte em geral, não pode alcançar essa zona interior. A literatura se dedica a dar voltar em torno do buraco; com sorte e com talento, talvez consiga lançar um olhar relampejante em direção ao interior.”
Rosa Montero afirma que, “salvo nas óperas e nos melodramas, a morte é um anticlímax”. Com esse livro, não é diferente. A morte é o anticlímax, mas antes dele há todo o caminho, que é o que interessa. É antes da morte que o livro se faz, ainda que cronologicamente ele se faça depois. O livro é aberto com a frase: “Como não tive filhos, o mais importante que aconteceu a mim na vida são meus mortos”. A cada página, a cada capítulo, a cada sobreposição entre Marie Curie e Rosa Montero, uma coisa se evidencia, clara como a água: quanta vida se faz ver diante da morte…