Na internet, o uso indevido de uma citação atribuída incorretamente à Dostoiévski tem tentado colocar palavras na boca do autor.
As fake news são, atualmente, um dos maiores desafios da sociedade. E mesmo aquelas que parecem “inofensivas” apontam para problemas relevantes sobre ética e coletividade.
Nos últimos dias, circulou pela internet uma citação, supostamente atribuída ao escritor russo Fiódor Dostoiévski, em que o autor teria dito que “a tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão impedidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis”.
Mas essa não pode ser encontrada em nenhuma das obras de Dostoiévski, porque ele nunca a escreveu.
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Nos posts no Facebook e no Instagram, pessoas comentaram, a partir da frase, a respeito do “politicamente correto” e do fato de cada vez mais conteúdos de ódio e violência estarem sendo excluídos das plataformas digitais.
Investigações jornalísticas identificaram que a frase inicialmente circulou em grupos online russos, sem nenhuma menção ao autor.
Em entrevista ao Estadão, Flavio Ricardo Vassoler, pesquisador de Literatura Russa, afirma que a citação não existe na obra de Dostoiévski. Ele aponta que, em “Os Demônios”, Dostoiévski de fato faz críticas cujos conteúdos poderiam dialogar com a ideia da frase que viralizou, mas que ela, descontextualizada e da forma como foi mobilizada, não é verdadeira.
Neste livro, Dostoiévski faz críticas à esquerda, e o texto foi escrito após Dostoiévski participar de grupos revolucionários e ser condenado à pena de morte, depois transformada em anos de trabalho forçado. Depois disso, ele passou a se aliar a uma esquerda mais conservadora. Ainda assim, o pesquisador chama a atenção para o fato de que Dostoiévski criticava a esquerda, mas suas críticas também podem ser usadas para pensar o capitalismo atual.
A citação que expressa uma ideia que pode ser considerada similar à explicitada pela fake news que atribuiu falsamente o trecho anteriormente citado à Dostoiévski é a seguinte:
“O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas — eis o chigaliovismo. Ah, ah, ah, está achando estranho? Sou a favor do chigaliovismo!”. (Os Demônios, p. 47 – Ed. 34)