Logo nas primeiras páginas de E Quem é Meryl Streep?, publicado em 2001, o escritor libanês comenta que ouvira uma fala do então presidente estado unidense George Bush em relação ao momento de tensão política mundial. Ele diz que, na ocasião, não notou que se tratava de um momento histórico: “presenciei um momento histórico sem me dar conta disso”, diz. Este trecho chama atenção porque parece fazer um espelhamento perfeito com o universo ficcional vivido pela personagem principal criada por Rachid: um sujeito que vivencia um desacordo e um desentendimento de seu próprio momento histórico. E é a partir deste vazio da história que o romance vai se ser construído.
E Quem é Meryl Streep? conta a história de um sujeito que é levado a uma série de angústias e reflexões por conta de uma crise conjugal. Cínico e sádico – em termos contemporâneos, diria abusivo – ele reclama que sua esposa só quer viver na casa da mãe para assistir televisão e que, por conta disso, seu casamento não é vivido em sua “totalidade” ou “normalidade”. O seu gesto de gentileza e afeto na busca de entendimento com sua esposa é comprar uma televisão, mas após tentar agarrar uma vizinha costureira em sua casa – ato inaceitável na cultura libanesa – se vê acusado de assédio. Sua mulher, com isso, se muda definitivamente de casa e pede o divórcio. Este é o ponto de partida do romance que passa por uma série de relatos deste sujeito sobre o papel do homem e da mulher na sociedade libanesa, de uma perspectiva, ao mesmo tempo, tradicional e absurda, cínica e sádica, violenta e patética diante de um mundo cada vez mais contemporâneo. Os adjetivos podem ser muitos.
Dei o título para este texto de “os ecos de uma masculinidade em decadência”, mas acredito que decadência não é exatamente a palavra apropriada. É evidente que a personagem expressa uma mais profunda decadência de uma determinada masculinidade, mas a palavra decadência remete, ainda, a uma concepção de tempo linear: a decadência é, ainda, um momento posterior a um auge que, por sua vez, viria a seguir de uma gênese. A palavra que procuro para pensar a figura de E Quem é Meryl Streep? é, talvez, anacronismo ou, melhor ainda, os ecos desse anacronismo.
O que se vê no romance é uma sobreposição de temporalidades díspares em um mesmo momento histórico, cuja narrativa é trazida por Rachid Al-Daif por uma personagem incapaz de vislumbrar além dos seus próprios tempos. O seu universo é fantasmagórico, assombrado, na medida em que todas as regras do mundo que até então lhe serviam passam a ser justamente aquilo que colocam em xeque seu poder, ou seja, tornam ridículo aquilo que é estável, torna plural aquilo que é linear. Aquilo que faz o homem oprimir as mulheres, no fim das contas, é também resultado de sua queda. E o ponto central de toda essa questão está a instituição do casamento e uma suposta investigação da pureza moral da mulher ao adentrar num casamento. O casamento, então, passa a ser um momento em que o homem deve aprender a responsabilidade de ser homem e, agora, deveria ser responsável também por uma mulher. Em um determinado momento, diz:
O casamento ensina responsabilidade, e o homem que não sabe o que é responsabilidade e que não tem consciência da importância disso na vida, esse sim é um ser humano incompleto.
Diante de seu casamento, a personagem desfila o seu desentendimento absoluto sobre todas as motivações da sua esposa em tudo que lhe diz respeito, transpondo para ela dúvidas e angústias sobre sua virgindade, relações outros homens antes dele, reconstrução do hímen, sexo anal, tudo isto recheado pela mais patética e cínica ignorância, a ponto de, em determinado momento, questionarmos se a figura acredita mesmo no que diz ou se tenta convencer a si próprio de suas razões. E, em movimento crescente, ele precisa vigiar até as secreções entre suas atividades sexuais com a esposa como indício de uma suposta moralidade:
Considerar que as secreções que acompanha o sexo são imundas é força de prova moral, de certo modo, de pureza de alma e de pouca experiência.
O pior de tudo é que esses absurdos são, ainda, regra em nossa sociedade, ainda que de maneira mais dissimulada. É por isso, também, e de maneira ambivalente, que emerge uma absurda empatia. É tudo tão absurdo que parece uma espécie de literatura de terror para a masculinidade e o terror sempre nos torna cúmplices. Ele é assombrado pelos fantasmas que durante séculos lhe deram um lugar de poder.
Meryl Streep, protagonizando um filme na televisão que ele estreara sozinho, sintetiza, então, todo código cifrado das mulheres: Por que ela havia saído de casa? Por que deixara o filho? O que sentia pelo marido? Para onde ia? Tinha um amante? O olhar de Meryl Streep, uma mulher que nunca foi conhecida pela beleza, para ele, se torna o olhar belo da mulher que ele desconhece, de uma mulher esfinge cujo rosto não lhe responde nada. E deste silêncio saem esses questionamentos infinitos:
“Achei, ou quis achar, que ela pretendia insinuar que, como homem, eu era detentor de força e potência. Pensei que se referia ao efeito da masculinidade e sua força.”
A potência da narrativa de Rachid Al-Daif está em explorar as fronteiras ocultas, mas muitas vezes tácitas, desta masculinidade hegemônica. Sua personagem usa da linguagem para tentar escapar das novas linguagens do mundo, criando uma espécie de disputa em termos que, para ele, está desde o começo perdida. A história de E Quem é Meryl Streep? retrata o momento exato do crepúsculo, uma fotografia do instante da queda de um tipo de vivência que sofre uma radical transição nas últimas décadas.
Enquanto Bush fala de um momento histórico também de forma anacrônica, reencenando guerras que lembravam cada vez mais o passado, Rachid escreve sobre um tempo histórico de anacronismos: o instante em que um momento histórico é justamente a perda do bonde da história.
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