Erva Brava: livro de contos retrata as dificuldades e resistências da vida no cerrado brasileiro

Em Erva Brava, primeiro livro de contos de Paulliny Tort lançado pela Fósforo Editora, o cerrado brasileiro e a vida de pessoas comuns são as protagonistas.

Buriti Pequeno. Uma cidade que poderia ser muitas pequenas cidades brasileiras, exceto pelo fato de que ela não existe. Ou então é pelo fato de ser fictícia que ela se torna todas as cidades de uma só vez. Não sei. Mas é em Buriti Pequeno que se desenrolam os contos de Erva Brava (Fósforo Editora), primeiro livro de contos da escritora brasiliense Paulliny Tort.

Semifinalista do Prêmio Oceanos em 2017, Paulliny Tort estreia nos contos com um livro que poderia muito bem ser considerado um romance em contos: apesar de independentes, um remete ao outro, por se passarem todos na pequena cidade. Assim, uma personagem que vai à igreja em um conto nos faz pensar no senhor que trabalhou a vida toda como sineiro, e assim vamos criando linhas invisíveis entre pessoas, lugares e histórias.

Buriti Pequeno retrata o que alguns optam por chamar “Brasil profundo”, expressão que a mim muito incomoda porque nos dá a falsa sensação de que os problemas e questões sociais que o constituem nada têm a ver com o “Brasil superfície” – o sudeste, é claro. A operação é cômoda porque isenta a nós, sudestinos, da tarefa de refletir sobre essas mesmas questões, e ao mesmo tempo, nos coloca automaticamente em um lugar de suposta superioridade. A profundidade de Buriti Pequeno é a profundidade do Brasil, ao mesmo tempo em que é também sua superfície: visível, palpável, tão cotidiana.

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No livro, alguns contos retratam uma certa aridez que não remete apenas ao clima, mas a uma vida árida, dura, sem muito respiro, na roça. É o exemplo do conto Mandiocal e da tentativa de Lourival de plantar mandioca num determinado local do terreno mesmo tendo Maria o avisado que ali nada cresce.

Outros retratam exatamente as pequenas brechas de uma “umidade” proveniente do movimento de vida que brota mesmo em circunstâncias adversas, e então os contos se tornam ternos, quase singelos, mesmo que ainda exprimindo duros contextos. É o caso de Como Nascem os Sinos e da tão bela tarefa de Tonico de passar adiante o ofício que há tanto tempo era seu, o de tocar os sinos da Igreja. Ou de Titan 125 e do casal que ansiosamente espera o momento da primeira relação sexual apenas para se dar conta de que os desejos humanos nem sempre seguem lógica ou programação antecipada. A Mulher do Pombo é, talvez, o conto que melhor congrega esses dois pontos, mesclando singeleza, tristeza, dureza, desejo, humor e nonsense para se tornar um dos textos mais inventivos e potentes do livro.

Esses duplo movimento que os contos fazem, da aridez à umidade, da umidade à aridez, dá também um duplo sentido ao título, Erva Brava. A primeira imagem que me capturou foi a de uma erva daninha, que se espraia pelo terreno por cima de tudo que vê pela frente – uma espécie de mal que brota da terra, e que no livro aparece de várias formas, nunca totalmente diretas mas sempre presentes, à espreita, ainda mais visíveis porque não necessariamente sublinhadas: a violência contra a mulher, a desigualdade social, as questões ambientais – essas espécies de pragas que, como ervas daninhas, brotam e se reproduzem o tempo todo numa velocidade terrível, difíceis de serem paradas.

Por outro lado, emerge como uma força disruptiva a ideia de uma erva brava como aquela que resiste à aridez da vida e nasce, por causa dela, apesar dela. Brava porque valente, porque destemidamente insiste em brotar, em criar passagem.

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