Eu estava passeando pelo Instagram quando me deparei com um perfil que chamou minha atenção. De cara, foram as cores, as palavras em caixa alta que pularam em meus olhos. Depois, foram as palavras que, de alguma forma, me mobilizaram. Percebi que estava diante de um trabalho potente, que estava espalhado em diversas partes do país, distribuído entre classe, raça e diversidade de gênero. Em seguida, entendi que a ideia era justamente essa: colocar em questão o nosso lugar, ao mesmo tempo que espalhava poesia pelo mundo.
Esse perfil é a Papel Mulher, uma coletiva feminista de poesia que, segundo a criadora Alexandra Maia, lambe as ruas de diversas cidades do Brasil com poesia, todas elas escritas por mulheres, sejam cis ou trans. Gostei tanto da coletiva que procurei a criadora para fazer uma entrevista para poder saber mais desse trabalho que, como me tocou numa tarde qualquer, pode também tocar você. E, principalmente, fazer refletir sobre os papéis das mulheres na sociedade.
A primeira coisa que me chamou atenção na Papel Mulher, obviamente, foi o próprio nome. Ele me disse tantas coisas entre o Papel, a Mulher, o Papel da Mulher na sociedade, e a Mulher no Papel de escrever na sociedade. Qual seria, então, nessa multiplicidade de sentidos, o papel do Papel Mulher?
Alexandra – Quando pensei no nome papel mulher pensava nesses muitos jogos que a expressão tem. “Papel de mulher é onde ela quiser”, né? Parece que a expressão já se tornou de uso do senso comum, mas ainda não é a realidade de muitas das mulheres de nosso país, afinal se pensarmos em números de feminicídio, abuso sexual, violência doméstica, lesbofobia, transfobia… entendemos que as mulheres ainda sofrem por ocupar e estar em determinados espaços. Foi pensando também no próprio instrumento do lambe, que é um papel que é colado na rua.
Um papel que colamos em ruas que não nos sentimos representadas, ruas que possuem nomes de coronéis, ruas onde somos violentadas constantemente. É como se tivéssemos a chance de através desses papéis reescrever histórias mal contadas. Como se fosse nosso papel reescrever essas histórias, porque é. Se você parar, por exemplo, para pensar quantos livros escritos por homens falam sobre questões pertinentes a vivência de mulheres, tais como essas apontadas acima (como feminicídio, violência, abuso, lesbofobia, transfobia) você vai pensar em pouquíssimos nomes de escritores que abordaram algum desses assuntos e não tenho medo de dizer que dentre os poucos escritores que você achar alguns vão tratar de forma leviana ou até romantizar alguma dessas questões.
Assim, a Papel Mulher aposta que a literatura escrita por mulheres possui algo de muito revolucionário que é falar sobre questões que foram silenciadas por muitos anos, a literatura escrita por mulheres, em sua essência, possui algo de revolucionário, pois se trata de mulheres entoando vozes que constantemente são silenciadas no ambiente doméstico e/ou no ambiente público.
O papel da papel mulher é levar essas vozes para a rua, para que sejam ouvidas pelo máximo de pessoas possível. Acreditamos que todos temos muito a aprender com essas vozes.
Entrando nas poesias propriamente ditas, é legal que as frases, os poemas, são quase todo curtos, numa fonte grande. Então eles tomam o nosso olho, tombam a palavra na nossa frente. Por que a rua como lugar pra essa poesia e pra “quens” em especial vocês querem dirigir essas palavras?
Alexandra – O lambe tem que ser visualmente atraente para que as pessoas leiam, então temos que selecionar trechos curtos que passem a mensagem que a escritora originalmente passou em um poema ou um texto inteiro. É um processo difícil e cheio de detalhes, mas estamos constantemente aprendendo. Escolhemos levar esses escritos para a rua por acreditar que é direito dessas vozes serem lidas por o máximo de pessoas possíveis e que é o direito das pessoas que passam lerem o que essas vozes tem a dizer. Essa troca deveria acontecer também em ambientes institucionais, como escolas, universidades, museus, bibliotecas mas sabemos que nem o acesso a esses ambientes é garantido de forma igual a todos e que mesmo dentro desses ambientes há uma invisibilização dos escritos de mulheres, afinal quantos dos escritores que você estudou na escola eram mulheres?
É um princípio da Papel Mulher levar essas escritas para a rua porque sabemos que grande parte da população do país, grande parte das mulheres do país, recebem um salário mínimo que mal dá para pagar as contas básicas, imagine para comprar um livro.
Queremos menos impostos sobre livros, queremos mais políticas públicas que fomentem o acesso a leitura, a leitura de mulheres, queremos salários mais justos… queremos muita coisa, mas enquanto tudo isso não acontece, enquanto a literatura, a literatura de mulheres, é ainda negada a muitos a Papel Mulher leva para rua, ao acesso dos olhos de todos que passem e queiram e possam ler. Pretendemos assim pensar palavras possíveis para construir uma sociedade melhor, uma sociedade possível porque essa não é.
A Juliana, uma das mulheres que faz parte da coletiva, disse que a ideia do lambe-lambe é “lamber as ruas com poesia”. Tem também uma atividade quase erótica nessa coisa de lamber as ruas com palavras, não?
Acho que tenha sim algo de erótico, no sentido de um corpo desejante na rua. A gente da Papel Mulher se pauta muitas vezes pelo que Audre Lorde escreveu e ela tem um texto muito bonito que fala dos poderes do erótico na vida das mulheres. Para Lorde, o erótico seria a energia criativa que mora em toda mulher, energia que combina sensação e sentimento e que deveria nos guiar em todos os aspectos de nossa vida, não só na sexual. Então, acho que sim, existe algo de erótico em lamber as ruas de poesia, porque existe muito desejo por trás de nossas palavras e nossos gestos. Tem algo que a Papel se tornou que quando criei junto com a ajuda de duas amigas próximas, Jessyka Ribeiro e Julyana Mattos, não imaginávamos que ia acontecer, mas aconteceu e é lindo, foi que a Papel Mulher se tornou ela mesma uma rede de mulheres que se apoiam, se escutam e compartilham seus muitos desejo além do desejo comum de lamber todas as ruas do país com palavras de mulheres.
O que mais gostei da proposta da coletiva é criar uma disputa por visibilidade. Por que há além de uma invisibilidade prática em relação a uma escrita das mulheres também uma invisibilidade simbólica, né? Como você vê isso e como o projeto visa inverter essa estrutura?
Sobre a invisibilidade, é isso, ela existe em muitos níveis. Eu me formei em letras em 2018 e durante a minha graduação eu estudei apenas três mulheres escritoras, todas brancas. Hoje eu faço mestrado e não é raro, apesar de todos os avanços que as lutas identitárias têm alcançado, principalmente dentro da academia, pegar textos nos quais os poetas citados sejam todos homens brancos. É sintoma da invisibilidade, por exemplo, que não tenhamos na maioria dos livros didáticos a presença de escritoras como Carolina Maria de Jesus, uma escritora negra, mãe, favelada, traduzida para mais de 13 idiomas, que foi um sucesso de vendas em 1960, batendo até Jorge Amado.
É sintoma da invisibilidade, por exemplo, pensar que Conceição Evaristo, quando concorreu à Academia Brasileira de Letras tenha recebido apenas 1 voto, mesmo tendo tido apoio de uma enorme campanha popular. É sintoma da invisibilidade o esquecimento que nos dá na cabeça quando pensamos em nome de escritoras que nos marcaram durante nossas formações. É sintoma da invisibilidade que muitas das mulheres que entram para coletiva Papel Mulher tenham dificuldade de se enxergarem como escritoras, apesar de muitas delas escreverem desde jovens. Talvez seja menos sobre a invisibilidade em si e mais sobre a dificuldade de enxergar. Acho que a Papel Mulher força a ver.
É importante eu aqui dizer que a Papel Mulher nasceu de um trabalho de uma disciplina do meu mestrado. Conto isso, para dizer que não estamos só, que muitas pessoas, muitas mulheres, de diferentes posições, de diferentes lugares e vivências, estão juntas na disputa por palavras que narrem um mundo melhor, mais justo para todas nós.
Em relação as mulheres trans, como dar a ver as suas escritas dando também espaço para a visibilidade para essas vivências?
Sobre a presença de mulheres trans, a coletiva Papel Mulher é diversa. Somos muitas! Um dos nossos objetivos é dar visibilidade a corpos diversos e isso inclui a escrita de todas as mulheres, inclusive as mulheres trans e travestis. Temos muitas mulheres conosco, atualmente contamos com a presença de poucas mulheres trans na coletiva, porém no processo de curadoria temos muitas que vão para os lambes. Nosso objetivo é que todas as mulheres se sintam acolhidas e possam acolher na coletiva porque sabemos que é de importância máxima nos respeitarmos e apoiarmos.
Audre Lorde, de novo, fala da importância de nos definirmos e nos reconhecermos em nossas diferenças. Eu, Alexandra, mulher cis lésbica nordestina, não passo pelas mesmas opressões que uma mulher negra, indígena, ou que uma mulher trans… e podemos andar juntas, mesmo reconhecendo que existem diferenças entre nós. Tentamos lembrar sempre na Papel Mulher, que o inimigo é o Patriarcado é a Heteronormatividade é o sistema Capitalista, para que não caiamos em disputas entre nós, disputa que apenas nos dispersariam energia de mobilização.
A Papel Mulher está espalhada em todo o país, né? Fale um pouco da coletiva e como outras mulheres podem participar!
A Papel Mulher quer se espalhar por todo o país. Até hoje, seis meses depois da criação da coletiva, já realizamos colagens em mais de 25 cidades, 12 estados diferentes. Já colamos em todas as regiões do país, norte, nordeste, centro-oeste, sul e sudeste, já tivemos uma colagem fora do país também, na cidade do México. Esse abraço de mulheres sempre deixa a gente querendo que mais mulheres se acheguem porque vamos precisar de muitos braços para construir tempos outros. Nós temos um grupo no whatsapp no qual trocamos ideias, mas temos reuniões mensais para nos conhecermos melhor e falarmos sobre as colagens, questões de segurança e tudo mais. A Papel Mulher é uma coletiva aberta a toda e qualquer mulher que respeite a diversidade e queira andar junto da gente. Somos uma coletiva sem fins lucrativos e também sem fundos, rs, então dependemos da venda de produtos autorizados e de ajuda que recebemos pelo nosso pix papelmulher@gmail.com
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Youtube: https://www.youtube.com/channel/UC6DvLhQGY4CS1oQ7fzTNPFQ
Twitter: https://twitter.com/papelmulher
Sobre a criadora e artista
ALEXANDRA MAIA é idealizadora, criadora e coordenadora geral da Coletiva Papel Mulher. Mulher lésbica cearense que escreve sempre que a mão pede. É mestranda em literatura pela UFF. Possui graduação em Letras pela UFLA, e especialização em Literaturas Portuguesa e Africanas na UFRJ, mas não sabe se isso ajuda muito.
Possui contos publicados pela editora selo off flip, pela editora @gosto.duvidoso e pela editora @filipaedições. É artista autodidata, mexe com colagens digitais e algumas artes têxteis.