Amarante abre o seu novo disco Drama (2021) com uma faixa instrumental que leva o mesmo título do disco em que ouvimos um arranjo de cordas tocado para uma plateia de um teatro. Ouve-se risos e aplausos ao fundo nesta abertura para um mergulho em uma nova peça do cantor e compositor depois de Cavalo (2013). Um novo filme ou um novo disco. Uma viagem ao redor dos seus sentimentos.
Quem acompanha a trajetória de Amarante sabe que um dos seus grandes prazeres é fazer desvios na crítica e tornar seu disco e suas músicas, se não mais herméticas, pelo menos mais escorregadias, fazendo da canção um território mais cediço e menos fácil para quem ouve. Em Drama, ele toma uma tangente e, ao mesmo tempo, compõe o seu disco mais difícil e mais rasgadamente visceral.
Passados os arroubos subjetivos (e geniais) da juventude dos Los Hermanos em que Rodrigo Amarante se perguntava “quem era mais sentimental que ele”, a pergunta em Drama para ser a de procurar um sentimento que é preciso escavar. Um sentimento que não só é do amor romântico, mas também de um contato histórico com essa identidade chamada eu. Assim, Amarante tenta deixar de lado a canção como um artifício com seus lugares para investir e investigar na sua múltipla dramaticidade. E acompanhar o disco por essa trilha é um passeio cheio de percalços e aventuras. Em Tara, por exemplo, ele faz uma canção quase bossa novística na contenção, ao mesmo tempo em que joga com um bolero à lá Lupicínio:
Teu apelo, o meu abalo
Eu morro e não me calo
Nosso amor que era carne
Cresceu fraco do osso
Quem diria
Morre moço
Em entrevista ao Cultura Livre, Amarante disse que mudou completamente a cara do disco ao entrar em contato com a literatura de Bel Hooks, uma autora negra norte americana. Diz ele, que Bel lhe fez deixar de lado a face masculina e patriarcal da razão e dos sentimentos sob controle para se permitir sons e rimas mais livres, largadas, bregas, de sentimentos mais urgentes. De sentimental, lá atrás, ao puro sentimento em latência agora. Uma viagem, talvez, como a dançante Maré que busca na ambivalência de Pierrot e Arlequim algum sentido:
Lua puxa o véu
Mexe o mar em mim
De Pierrot à Arlequim
Fosse só saber
Precisei sentir
Só me resta insistir
Uma das minhas preferidas é Tanto que, nos ritmos quebrados, com uns metais que nos embalam como se estivéssemos prolongados pela maré, nos carrega por sobre a canção como um barco que atravessa alguma latinidade de uma Cuba atrás de um Chet Baker após um ano de viagem ao Brasil. Parece confuso? Mas essa é a graça, as referências são translúcidas, mas ao mesmo tempo tão originárias que nos tocam enquanto escapam. Um destaque também pra letra de Tanto:
Eu sei bem
O que sinto é mais
E não tem porquê
Mas haja como
A pele doce, quem tem
A pele doce, quem dá
A pele doce, quem tem
O sal do osso, quiçá
Um destaque final para Um Milhão, a canção do disco que conecta esse sentimento de Amarante a uma polis urbana:
A multidão
Vem a pé
O que eles veem, só não vê…
A canção possui uma espécie de narrativa da infância, do passado, das mudanças de dimensões, de uma visualidade que se altera. Uma canção que coloca coletivamente uma memória que é dele, como se fizesse cinema pelas lentes do som.
Fui à rua onde eu nasci
Vi o prédio em pé
Tudo era tão maior do que é
Encostada à vila em frente, um afronte à lei
Uma placa acesa, um muro de enfeite
No cartaz, um dia limpo
Era a paz, enfim
Sem um beco nem um negro marfim
O que eles veem, só não vê
Quem não quer ver
Um disco que embala um sentimento de um Amarante que a gente gosta de conhecer e que se revela cada vez mais, como se conforme o tempo passasse uma política do encontro que sempre esteve no músico fosse chegando cada vez mais perto da gente. Amarante é cada vez mais um “hermano” de cada um que se permite lhe escutar.