Lina Meruane é um dos nomes mais importantes da literatura chilena atual. A autora, que frequentemente aborda a temática da doença e das exigências sociais às quais são submetidas as mulheres, tem importantes publicações no Brasil.
Em “Sangue no Olho”, Lina Meruane constrói a história de Lina Meruane — ela mesma e, ao mesmo tempo, uma ficção. Em uma narrativa atravessada por elementos autobiográficos que edificam uma história imaginada, a autora faz um brilhante estudo sobre a visão, as palavras, a escrita e o amor. Surpreendida por uma condição nos olhos, que se enchem de um sangue grosso e escuro que a impede de ver, Lucina, ou Lina, lida com o desespero de ver ruir tudo aquilo que conhecia e de se redesenhar toda a sua relação consigo, com as outras pessoas e com o mundo. Escritora, precisa parar de escrever; pesquisadora, precisa abandonar a tese de doutorado; leitora, precisa contentar-se com audiobooks; vidente, precisa transformar-se, aos poucos, em “cega profissional”.
Leia AQUI a resenha completa!
Separamos algumas frases impactantes e sensacionais dessa obra que é, com certeza, um destaque na literatura latinoamericana contemporânea. Confira:
Vejo tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio.
Era imperativo ter um olho, ainda, pelo menos um olho para conferir se tudo estava certo, um olho perspicaz para compensar um olho cego. Porque o único olho vidente que eu ainda tinha parava de ver se eu me agitava: meu ir e vir levantava o sangue empoçado na retina, sacudia-o como um espanador, o escovão do movimento remexia-o.
A rua não era um lugar, era uma multidão de ruídos se acotovelando e se apertando.
A casa estava viva, empunhava suas maçanetas e afiava seus ferros enquanto eu insistia em me apoiar em cantos que não estavam mais no mesmo lugar.
Nada do que Ignacio e eu vemos nos convence, e eu, que não vejo o suficiente, que sigo sua descrição do mundo somente com a ponta dos dedos, temo cair fulminada a qualquer momento, de calor e de desgosto.
Eu não podia me distrair, meu ser inteiro exigia uma concentração multiplicada, uma dedicação absoluta à geografia das coisas.
Não abria exceções porque tudo o que via já era excepcional.
Em Nova Jersey eu me esquecera do castelhano. Depois, em Santiago, me esqueci do inglês. Agora estou esquecendo de mim, pensei.
Tenho o passado amontoado nos olhos.
Suspendi o futuro enquanto espremo, sedenta, o presente.
Mas a lua não podia ter menos importância para mim, me interessava mais que o mundo apressasse as voltas sobre si mesmo, que fosse abreviando a espera.
As cruzadas eram um conjunto de palavras sem sentido que se atravessavam sem outro motivo além de compartilhar uma letra. Compartilhar uma letra como única condição, pensei.
Mas a palavra amanhecer não evocou nada. Nada que se parecesse com um amanhecer. Meus olhos iam se esvaziando de todas as coisas vistas. E pensei que as palavras e seus ritmos ficariam, mas não as paisagens, não as cores nem os rostos, não esses olhos negros de Ignacio onde eu vira derramar-se um amor às vezes desconfiado, rude, ferino, mas sobretudo um amor aberto, expectante, cheio de miragens que as palavras cruzadas definiam como alucinação.
(…) fiquei pensando por um momento na palavra escritora ao lado deum verbo conjugado no passado, no passado dos livros que havia escrito e que já não tinha certeza de poder continuar escrevendo.
Vendo-o ou não, é como se o tivesse visto: eu o construo em minha memória.
A doença na literatura latino-americana, pensei, me dando conta de que eu era como a antropóloga que se apaixona por seu objeto de estudo. Um amor desmedido, arriscado, porque o objeto tinha se apropriado de mim, se voltado contra mim.
Não eram os fatos reais que me mobilizavam, mas as palavras, e era minha mão que empurrava as palavras, que construía e depois desfazia as frases para voltar a compô-las. Escrever era um exercício manual. Puro malabarismo.
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