Cidades Invisíveis, de Italo Calvino: literatura como exercício de imaginação

Italo Calvino, nascido em Cuba, cresceu na Itália e tornou-se um dos mais importantes escritores de todos os tempos. Com um texto ágil e uma sensibilidade única, o autor é conhecido e reconhecido pela incrível habilidade imaginativa, que faz da literatura uma experiência de invenção – pra quem escreve e pra quem lê.

Italo Calvino

Cidades Invisíveis, publicada em 1972, é uma obra especial dentre as muitas maravilhosas obras de Calvino. A partir de acontecimentos e personagens históricos que realmente existiram, o autor imagina diálogos e reescreve a História: Marco Polo, o famoso mercador, explorador e viajante italiano do século XIII, conversa com Kublai Khan, imperador dos tártaros que dominou grande parte da Ásia Oriental neste mesmo século.

As histórias de Marco Polo e suas viagens foram registradas pelo próprio em As Viagens de Marco Polo, onde é possível acompanhar as descrições do mercador sobre as inúmeras maravilhas da China e de muitas cidades asiáticas pelas quais passou durante as mais de duas décadas em que passou viajando pelo Oriente.

Calvino reinventa As Viagens de Marco Polo. Imagina diálogos entre Polo e Khan, enquanto o primeiro narra as belezas do império ao segundo, que conhece o território que domina pelos mapas, não necessariamente por tê-lo visto. Assim, Marco Polo torna-se os olhos de Khan em seu próprio império, descrevendo as cidades pelas quais passou. O livro é dividido em 9 partes que combinam as conversas entre os dois e as narrativas de Polo sobre 55 cidades, essas divididas em 11 grupos: as cidades e a memória, as cidades e o desejo, as cidades e os símbolos, as cidades delgadas, as cidades e as trocas, as cidades e os olhos, as cidades e o nome, as cidades e os mortos, as cidades e o céu, as cidades contínuas e as cidades ocultas. A narrativa de Marco Polo emaranha esses muitos mapas de cidades, intercalando esses grupos em uma ordem desordenada, que as liga pelo menos fio aleatório e sem explicação que liga uma cidade àquela outra com a qual faz fronteira.

As cidades de Marco Polo narradas por Calvino têm, todas, nome de mulher. Dorotéia, Leandra, Cloé, Leônia, Otávia. Cada uma traz consigo elementos muito diferentes entre si, mas continuam a compartilhar algo que torna todas similares entre si; são cidades, têm mais ou menos vida e morte, são mais ou menos belas, mais ou menos grandes. As descrições das cidades são minuciosas: conhecemos cada canto, cada característica de seus espaços e habitantes. Ao final, chegamos à conclusão de que o que aproxima todas essas cidades é exatamente o fato de serem tão diferentes: compartilham entre si a diversidade.

O realismo e o retorno à História fazem com que haja muita realidade nas cidades de Marco Polo. Casas, pessoas, fábricas, obras, praças, igrejas, todos os elementos que reconhecemos como sendo parte de uma cidade estão presentes. Mas Calvino soma ao realismo tons mais ou menos leves de irrealidade, construindo cidades penduradas num abismo, viradas de cabeça para baixo, duplicadas, construídas verticalmente… É como se estivéssemos visitando cidades em outro planeta, mas que por alguma razão quase imperceptível nos parecem tão verossímeis quanto a mais sem graça das cidades que já visitamos em vida; talvez porque, tão surreal quanto uma cidade em que apenas vemos os encanamentos, e não as construções, seja a cidade moderna com seus carros velozes, suas pessoas com as caras enfiadas em seus telefones e em suas pequenas vidas particulares.

Zenobia, de Italo Calvino, pela arquiteta peruana Karina Puente

Afinal, o que faz uma cidade? O que faz com que um conjunto de pessoas em um espaço em um tempo torne-se compreensível enquanto uma unidade social? Pelas cidades de Calvino, depende. É a memória, é o desejo, são as trocas, os mortos, o céu. É aquilo que foi, mais do que o que é, como em Zaíra, cuja descrição “deveria conter todo o passado de Zaíra”, um passado que se crava em todos os espaços do presente, em toda a materialidade de ruas, janelas e escadas que fazem Zaíra hoje.

“(…) aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado.”

Também faz uma cidade aquilo que se imagina que ela possa ser, mais do que aquilo que ela é, como Fedora, cidade de pedra cheia de pequenas esferas de vidro que contêm em si versões daquilo que Fedora poderia ser caso não fosse o que é, de modo que Fedora é todas essas esferas ao mesmo tempo.

Não porque sejam igualmente reais, mas porque são todas supostas. Uma reúne o que é considerado necessário, mas ainda não o é; as outras, o que se imagina possível e um minuto mais tarde deixa de sê-lo.

Seja como for, Calvino está certo de que podemos dividir as cidades de muitas maneiras, assim como são muitos os elementos que fazem com que uma cidade exista seja o que é. E é certo para ele, também, que há ao menos uma forma de pensar as cidades que não faz sentido: dividi-las entre “felizes” e “infelizes”:

“Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por ela cancelados.”

Durante as conversas de Marco Polo e Kublai Khan, Calvino conta que, no princípio, por não falarem a mesma língua, Polo usava objetos que trazia das aventuras, gestos e sons para contar as cidades que havia visitado, de modo que nem sempre sua narrativa era clara para Kublai Khan. Na discussão a respeito da linguagem, Calvino delimita aquilo que o livro quer fazer ver: que contar é mais importante do que como se conta.

“Mas o que Kublai considerava valioso em todos os fatos e notícias referidos por seu inarticulado informante era o espaço que restava em torno deles, um vazio não preenchido por palavras. As descrições das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: era possível percorrê-las com o pensamento, era possível se perder, parar para tomar ar fresco ou ir embora rapidamente.”

Com o tempo, Polo aprende a língua local e lhe é possível usar palavras que, somadas aos objetos, gestos e sons, tornavam sua narrativa mais compreensível para Kublai Khan. No entanto, Calvino conta que quanto mais palavras Marco Polo tinha à sua disposição, menos feliz era a comunicação entre os dois, uma vez que as palavras ocupavam o precioso vazio no entorno dos fatos.

Calvino abre seu livro dizendo que não se sabe ao certo se Khan acreditava realmente em todas as descrições de Marco Polo sobre as cidades que havia visitado. Há, da mesma forma, quem duvide das histórias contadas por Marco Polo nos registros reais de suas aventuras. Mas depois de ler as Cidades Invisíveis de Calvino, é fácil chegar à conclusão de que pouco importa se o registro era confiável ou não; importa, mesmo, é contar, narrar, inventar o mundo por meio da palavra, na relação com aquele ou aquela que escuta ou lê o que se conta. Inventar cidades que serão contadas para, quando ouvidas, tornarem-se ainda outras, porque “quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido”. As únicas cidades visíveis são as invisíveis, que existem apenas junto à volátil existência das palavras ou, ainda, as que escapam às palavras e existem no vazio entre contar e ouvir, que é o espaço privilegiado daquilo que nos faz humanos: a capacidade de inventar.

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