Arte dos reparos: 6 poemas de ‘Acúmulo’, de Lilian Sais

Lilian Sais é escritora, pesquisadora e tradutora de grego antigo, além de roteirista e produtora dos podcasts Todos os Ontens e Como o poema. Doutora em Letras, Lilian publicou seu primeiro livro, acúmulo, pela Editora Patuá em 2018. Antes de acúmulo, publicou a plaquete “Passo imóvel” (ed. Cozinha Experimental), e está no processo de publicação de Uma baleia nunca dorme profundamente (ed. Hecatombe). Também coordena a página Lendo Homero, que promove discussões sobre a Ilíada e a Odisseia.

No seu primeiro livro de poemas, os poemas de Lilian cruzam memórias que se alojam no corpo, na cidade, no vazio. Acúmulo parece lançar luz sobre as fissuras que irremediavelmente se abrem sobre nossa própria história, pedindo caminhos pela materialidade da palavra.

Já disse Elizabeth Bishop “A arte de perder não é nenhum mistério/ Tantas coisas contêm em si o acidente/ De perdê-las, que perder não é nada sério”. Como sua contraparte indissociável, o vazio acompanha o acúmulo, e pede uma dança que Lilian traduz tão bem nesses poemas.

Separamos aqui 6 poemas de Acúmulo para você conhecer. Para comprar o livro, acesse aqui.

privacidade

nascer em são paulo

sempre é prematuro,

começo da ponta

de um peso, buraco

que não é túnel, 

que chuva não

inunda, que cheiro 

de café não

preenche, edifício,

fístula, santo:

quanto maior a pedra

maior o câmbio, traste,

a vida em ricochete,

uma cadeira vazia na sala,

uma corda que pende 

(e a cortina

do quarto

está sempre

fechada)

kintsugi

reparos de ouro

esses caminhos de rios

tatuados nos seios

pelas vias

do tempo

e do afeto.

é pele marcada

e ainda é pele,

paredes da casa

que habito

sem quitar,

que encobre

entranhas

mas revela

as intimidades

mais íntimas:

na ponta dos dedos,

a identidade,

na cicatriz da testa

a criança levada

do tempo em que

eram muitos

os lugares,

à mesa,

na mancha do antebraço

o cigarro apagado

ali mesmo

em espirais

de desespero.

sobrevivente de mim mesma,

pele-palavra que grita

o mapa do percurso.

inventário maior

da vivência:

embriaguez & denso vazio

fome & cansaço

excitação & vício.

não,

não há nudez

incólume

Kintsugi: arte japonesa de reparar objetos quebrados com ouro

fluxo

de realidade nítida

há dias não acordo

tampouco durmo,

apenas observo:

há em mim alguma coisa

sem nome e excessiva

que torna a existência

impraticável, tanto pior

às duas da tarde

quando de fato são

duas da tarde

e a lucidez é tamanha

que desejar é a borda

do abismo, e sangra.

(aceita, esse choro nem é fraqueza,

mas também não me peça

pra ser feliz de domingo, gostar de quatro

de novembro, colocar flor em vaso,

arrumar o armário, não tem problema,

não entender é mais completo,

eu sei,

mas aceita, que às vezes nem é tristeza, é só

cansaço, só também não me peça

pra seguir a numeração

das páginas, viver assim,

como se adoçar café

fizesse sentido)

o acúmulo

de lutos & vícios

me trouxe

não saúde

mas humildade:

nunca viver

com a arrogância

de quem diz

“isso eu faço

amanhã”

oração

chances são

de ser erro

a insistência.

corte de navalha

a golpear veredas

com palavras.

para dor crua

não há cura,

redenção apenas

por encanto

ou distração.

peço

de trago em trago

que entre

potência e exaustão

eu ainda seja

possível.

conheço âncoras do meu tamanho

vida em estado de âncora

não por amparo

ou apego

mas pela gravidade

particular que pesa

nesse momento

o infinito.

(todos estão parados

mas esse corpo está

realmente

parado)

há de se respeitar

quem faz três refeições

completas por dia.

às vezes consigo.

do aplauso,

desisto com honras.

Arte da capa: Billie Bond / Reprodução

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