As 18 melhores citações de “Memórias de um Urso Polar”, de Yoko Tawada

Histórias com personagens animais não são novidade. Desde nossa infância somos apresentados a fábulas e narrativas produzidas a partir de personagens não humanos antropomorfizados que nos permitem entrar em contato com algo que fala de nós, humanos. Não é propriamente o fato de serem ursos-polares os protagonistas do livro da japonesa Yoko Tawada que tornam esse um livro especial; é sua a capacidade de articular realidade e absurdo em uma narrativa tocante, comovente e sagaz, em que a delicadeza e singeleza das reflexões de um urso acompanham a sofisticação e a dureza dos processos que instauram instituições e burocracias tão assustadoramente humanas.

A escritora japonesa Yoko Tawada

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Yoko Tawada nasceu no Japão em 1960, mas na década de 80 se mudou para a Alemanha. Ela já morava há tempos no país quando, em 2006, o mundo foi capturado pela fofura de um urso-polar que, no zoológico de Berlim, havia sido rejeitado pela mãe e adotado por seu criador. Como grande parte do mundo, a autora também se viu atraída para a história do pequeno Knut — inspiração para a escrita deste livro: “Memórias de um urso-polar” conta a história de três gerações de ursos-polares artistas, Knut, sua mãe Toska e sua avó. A partir das relações que essas três gerações de ursos têm com humanos em diferentes países e momentos históricos, Yoko Tawada passeia por alguns dos mais relevantes eventos do nosso século como a Guerra Fria, o desfazimento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim. E enquanto constrói esse mapa histórico-geográfico, tece também outros mapas menores, mais locais, cujos elementos que os constituem são tanto humanos quanto não-humanos.

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“A primavera é tempo de luto. Alguns dizem que ela nos rejuvenesce. Mas quem rejuvenesce volta aos tempos da infância, e isso pode machucar.”

“O escrever não se diferencia tanto da hibernação. Aos olhos dos outros, eu poderia parecer adormecida, mas na toca de urso do meu cérebro eu dava à luz minha própria infância e a criava até vê-la crescer. (…) Era uma sensação solitária, a de escrever uma autobiografia. Até ali, tinha usado a língua principalmente para transportar uma opinião para fora. Agora a língua ficava em mim e tocava pontos fracos dentro de mim. Era como se eu estivesse criando algo proibido. Eu me envergonhava daquilo, não queria que ninguém lesse a história da minha vida. Mas, quando vi que as letras cobriam inteiramente o papel, senti desejo de mostrá-la a alguém.”

“Após a morte de todas as criaturas vivas, todos os nossos desejos não cumpridos e palavras não ditas seguiriam à deriva na estratosfera, combinando-se uns com os outros e permanecendo na terra como neblina. Como a neblina seria vista pelos vivos? Iam se esquecer de lembrar-se dos mortos e se entregar a comentários meteorologicamente banais como: “Que neblina, hein?””.

“O escrever era como uma acrobacia mais perigosa do que dançar sobre uma bola. Era mesmo um trabalho árduo aprender aquela dança, tanto que cheguei a quebrar os ossos durante um ensaio, mas ao fim consegui atingir meu objetivo. Ao final, estava certa de que conseguia me equilibrar em cima de um objeto rolante, mas não sei se posso afirmar o mesmo da escrita. Para onde rolava a bola do escrever? Ela não podia simplesmente rolar para a frente, pois assim cairia fora do palco. Minha bola deveria girar em seu próprio eixo e ao mesmo tempo circular dentro do centro do palco. Como a Terra ao redor do Sol.”
“Eu não era vítima da violência de Ivan. Nenhum movimento corporal que eu fazia no palco era exagerado ou desnecessário. Em outras palavras: nada do que eu fazia era resultado de uma violência externa. Não temos escolha na vida, pois tudo o que somos capazes de fazer, em comparação com a própria vida, não é nem de perto o que imaginamos. E se não compreendemos essa pequenez em sua totalidade, não sobreviveremos.”

“Não posso ser vegetariana”, eu disse rapidamente, mesmo sabendo que meus antepassados e parentes distantes haviam sobrevivido sem carne. Eles comiam sobretudo frutas e vegetais, ocasionalmente um caranguejo ou peixe. Lembrei-me de uma conferência sobre o capitalismo e o consumo de carne, onde haviam ne perguntado por que eu matava outros animais. Não soubera responder.”

“Escrever uma autobiografia significava adivinhar ou inventar tudo o que se havia esquecido.”

“Para nossa surpresa, já uma semana depois da chegada, os ursos-polares fundaram um sindicato. (…) Os ursos-polares podiam conduzir debates políticos em alemão fluente. De sua boca, saíam novos termos técnicos, que provavelmente vinham dos movimentos trabalhistas. De suas exigências, não havia nada que se poderia chamar de tipicamente “urso”. (…) Mesmo que nós seres humanos também precisássemos de um chuveiro ou de uma cantina, nunca tivéramos a coragem de reivindicar qualquer coisa. Trabalhávamos todos os dias tão apressados que já havíamos esquecido havia tempos o conteúdo de nosso contrato de trabalho.”

“A ideia de uma identidade nacional sempre foi estranha para os ursos-polares. Era comum engravidarem na Groenlândia, dar à luz no Canadá e criar os filhotes na União Soviética. Eles não tinham cidadania, não tinham passaporte. Nunca eram exilados, cruzavam as fronteiras sem pedir a aprovação de ninguém.”

“Havia, inclusive, profissões em que as mães tinham de ficar meses a fio sem ver seus filhos. Ninguém as acusava de nada. Não conhecíamos o amor materno, ele não era sequer um mito. As igrejas estavam fechadas, lá onde a Virgem Maria segurava seu filho nos braços de forma exemplar. Quando a supressão da religião foi dissolvida, o mito do amor de mãe surgiu como uma miragem no horizonte das fronteiras internacionais. Deixava-me muito triste que, após a quebra do Muro, Toska tenha sido muito duramente criticada por ter rejeitado seu filhote Knut. Alguns diziam que ela o deixara em mãos alheia, porque vinha da Alemanha Oriental. Outros escreviam no jornal que havia perdido seu instinto materno porque trabalhara em um circo hostil aos animais sob o típico estresse socialista. O termo “estresse” parecia não condizer com o lugar. Não havia estresse antes da queda, somente sofrimento. O termo “instinto materno” era tão longínquo quanto. Para os animais, não é o instinto, e sim a arte que permite criar seus filhotes. Com os seres humanos não pode ser muito diferente, ou não adotariam crianças diferentes, de outras espécies.”

“Toda grande personalidade, capaz de um ato que muda o mundo, deve ter sido adotada por um animal e alimentada por ele.”

“Existem muitos costumes e formas de conduta que são naturais para quem nasceu e cresceu no circo. Mas são incompreensíveis ou inaceitáveis para os filhos de trabalhadores. Claro, muito disso pode ser aprendido posteriormente. Mas há diversas coisas que não estão escritas em lugar algum. Esse é o motivo pelo qual um cidadão normal acha difícil sobreviver ao circo.”

“O circo desenvolveu suas próprias leis da natureza: uma pessoa que parece desajeitada ao andar é um atleta. Uma pessoa que consegue fazer a plateia rir deve ser levada a sério.”

“Uma alma humana acabou sendo menos romântica do que eu tinha imaginado. Era feita principalmente de línguas, não somente línguas comuns e compreensíveis, mas também de fragmentos quebrados de língua, as sombras de línguas e as imagens, que não podiam ser palavras.”

“Knut reconhecia cada dia mais a ausência como um período de tempo insuportável. Ele apertava seu corpo contra o bichinho de pelúcia desgastado, porque não havia mais ninguém perto dele. Era irritante que o animais de pano só tivesse algodão em sua cabeça. Nunca reagia, não importava a força com que Knut o jogava para o lado ou se fingia que ia jogá-lo para o alto.”
“Knut diciu em um curto ataque de raiva nunca mais estabelecer contato com o urso-do-sol. Knut era Knut. Por que não deveria ser Knut? Mas era impossível tirar o comentário do urso-do-sol da cabeça. Ao observar com atenção uma conversa entre Matthias e Christian, era possível identificar imediatamente que Matthias não chamava a si mesmo de Matthias. Ele não usava seu próprio nome, como se não tivesse nada a ver com ele, e o transferia para as outras pessoas. Que fenômeno curioso! Como Matthias chamava a si mesmo? “Eu”. O que era ainda mais curioso era o fato de que Christian também se chamava de “eu”. Como não se confundiam, se todos usavam a mesma palavra para se referir a si mesmos?”

“Quando crescer, quero casar com Matthias e viver com ele até que a morte nos separe. Mas ele não disse nada sobre o parentesco genético entre ursos-polares e Homo sapiens. Na frente da área do urso-do-sol, comparei-me com Matthias e com o urso-do-sol. Não importava sob qual ângulo eu olhasse: a semelhança entre mim e Matthias era maior do que a semelhança entre mim e o urso-do-sol.”

“As crianças reconheciam minha situação de cara, enquanto alguns adultos soltavam palavras indelicadas. Suas afirmações fediam, assim como suas tripas cínicas; sua humanidade era aplicada somente quando falavam de outros Homo sapiens.”

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