O dia em que José Saramago teve a ideia do livro Ensaio Sobre a Cegueira

O romance Ensaio Sobre a Cegueira, publicado por José Saramago no ano de 1995, foi a obra que, provavelmente, projetou o autor para receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, sendo, inclusive, o primeiro e único Nobel entregue a um autor de língua portuguesa. A obra conta a história de uma cidade em que todas as pessoas ficam cegas (exceto uma) e precisam lidar com o rápido esgarçamento de nossa sociedade tal como conhecemos, destruindo completamente o sistema baseado no mundo do trabalho, do capital, ao mesmo tempo em que nos coloca diante de ato vis da barbárie humana que, com a ausência da visão, passam a conviver ao lado de todos nós. No entanto, podemos dizer que Ensaio sobre a Cegueira é uma obra que, diante da catástrofe, busca reconstruir laços comunitários e superar os estereótipos que nos divide para nos reunir em um ponto de interseção: vivemos no mesmo lugar, somos pessoas, precisamos nos ajudar. Porém, de onde veio a ideia de José Saramago escrever este romance?

Quem conhece as obras do autor, pode perceber que uma boa parte dos seus livros partem de uma pergunta que norteia toda a construção da narrativa: E se a Península Ibérica se destacasse da Europa (Jangada de Pedra)? E se ninguém votasse ou votasse nulo (Ensaio Sobre a Lucidez)? E se a morte parasse de matar (Intermitências da Morte)? Com Ensaio sobre a Cegueira não foi diferente.

José Saramago conta que, um dia, estava em um restaurante quando começou a reparar nas pessoas que estavam ao seu redor: homens e mulheres, em volta de mesas e cadeiras, conversando e comendo. O autor percebe que todas elas cumpriam um protocolo social, falavam baixo, usavam os talheres de maneira adequada e eram educadas uma às outras, respeitando o que seriam as normas de boa convivência de uma sociedade de classe média consumidora. Saramago, sempre crítico da sociedade de consumo, observava cada gesto de cada uma daquelas pessoas, as minúcias ao pedir vinho ao garçom, ao dobrar do guardanapo, ao fazer uma pequena reverência ao se levantar para ir ao banheiro, como parte de um aprendizado social de uma classe que se constrói e se afirma em gestos polidos, mecânicos que, aos poucos, se incorporam na subjetividade, construindo, inclusive quem elas são. Enquanto observava, porém, de repente veio uma frase na cabeça do autor:

– E se todos ficassem cegos?

É possível imaginar as imagens daquele restaurante se desconstruindo diante dos olhos de Saramago, como se cada protocolo social desse dependesse de um órgão tão pequeno como os olhos e de um sentido como o da visão que, de tão importante, muitas vezes nos passa despercebidos. Imagino Saramago e perguntando: se não houvesse visão, as pessoas teriam tantas preocupações com este protocolos sociais? Toda esta ordem e harmonia estaria mantida? Usariam estas roupas que vestem? Arrumariam os cabelos destas forma? Falariam neste tom de voz comportado em lugares estrategicamente separados entre as cadeiras e as mesas? Seriam estes homens e mulheres ou seriam completamente distintos? Assim, em um segundo, Saramago desfazia toda a nossa moderna, contemporânea e capitalista em suas bases, em suas estruturas, em seus mais simples acordos. Porém, para fechar a montagem do romance que nascia diante de seus olhos, Saramago chegou a uma conclusão, esta sim, determinante para entender a complexidade de Ensaio sobre a Cegueira:

– Mas, de alguma forma, já não estamos todos cegos?

E assim nasceu a obra Ensaio sobre a Cegueira.

Relato presente na obra José e Pilar, contada por Luiz Antonio Ribeiro

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