Conheça 7 poemas de Ruído Branco, de Ana Carolina

Após se consagrar como uma das grandes vozes da MPB, Ana Carolina teve sua estreia literária, em 2016, com o livro Ruído Branco, pela editora Planeta. O livro, que revela muitos traços autobiográficos, reúne poemas, textos, frases, composições (poesia musicada), pinturas e fotos da artista. Além disso, traz alguns registros e fragmentos que foram guardados desde a adolescência.

Dessa forma, o título Ruído Branco, que remete ao sinal sonoro que contém todas as frequências na mesma potência, também demonstra outras facetas, até então, desconhecidas da artista, como a de poeta, prosista e pintora.
Fabrício Carpinejar, escritor gaúcho, é o responsável pelo prefácio e Elisa Lucinda, artista e poeta, pela contracapa.

“o homem que há em mim se apaixonou perdidamente pela mulher que sou” – do poema Eu e eu – Epígrafe

Confira alguns poemas selecionados:

Andaime
Vou pela rua a passos rápidos
A criança perdida que fui me persegue
Não olho pra trás
Entro no primeiro ônibus
Por tristeza a procuro, pouco antes de descer
Ela vem logo atrás
Sigo pela rua e todos se perguntam quem é aquela menininha
sozinha andando na rua. Será que está perdida?
Quanto mais ela me segue, mais se perde
Subo em um andaime
O andaime sobe por entre os andares
A menininha fica lá embaixo parada, olhando pra cima,
e grita:
Pode subir! Eu estarei aqui te esperando
Ao pular, suas palavras tremulam em mim como um lenço
perdido ao vento

Voo
A dor é um barco
Se tivesse dor
faria a travessia para o outro lado de si mesma
Quando canto, as memórias levantam voo de mim

Pra ela
No começo bebíamos champagne
Eu aprendi que ela prefere vodca com caju
No começo suas roupas eram coloridas
Hoje prefere o branco e o preto
No início ela gostava de poesia
Hoje ela é apaixonada por poesia
Então resolvi perguntar coisas que ainda não sabia:
Qual a temperatura ideal para você?
Quantos graus são necessários para medir a sua felicidade?
A temperatura do seu braço, me respondeu
A temperatura da sua pele
Não há outra solução a não ser ficar com ela abraçada pra sempre

Salto
Ela escuta minha música
enquanto chora
Salto do mp3 para o seu colo
e ela me consola

Velho piano
Quero queimar meu navio
Deixar a corda no rio
Na cinza da estrada
Nada
Na água escura
Nada é loucura
Nem Deus me espera
No meio das pedras
Vou me afogar
E ir onde está
Um velho piano
E um homem tocando
Há muitos anos no fundo do mar
Outro
Neste quarto cheio de espelhos
há outro quarto
que arma com incerteza
um sigiloso teatro de mim
comigo mesma
Rotatória
A roda do último carro faz seu último retorno
A vida inteira já não basta
Discutido comigo e sempre perco, não tem jeito
O espaço entre nós é excessivo ou muito estreito
Quem olha pra mim não volta cedo
Em toda felicidade existe uma tristeza quieta
Vi as feridas que abri em mim pra me curar
A cidade escorre em suas lágrimas
Lá longe um caminhão abastece
Agora você sabe quem eu sou e por isso me desconhece
Minha saudade percorrida pela eletricidade chorando um pouco demais
quase ultrapassando a sua causa
O tempo pra mim se faz cedo
Seus olhos escondiam todos os segredos
O tempo não me desperdiça
Vi que em mim morava uma multidão
nem mil madrugadas poderão me salvar
Recolho suas lágrimas com o dedo
Cada melodia é um vidro que corta
Ninguém jamais irá lhe devolver
o espaço ocupado por suas desculpas
Não rezei, não pedi, não fiz nenhuma prece
Agora que você sabe quem eu sou, me desconhece
Que mais me posso vencer
Seu perdão não para de doer
Exausta de carregar a tempestade
O dia já havia entristecido tudo
Como um choro ao contrário
o mar me entra pelos olhos
Não sei o que te invento
A noite me arremessa pra longe de mim
O dia me esquece
Só agora você sabe quem eu sou e por isso me desconhece
Confira o poema Rotatória declamado por Maria Bethânia:

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