[Traduzido de Brainpickings]
Lou Andreas-Salomé foi uma psicanalista, poeta e intelectual nascida na Rússia em 1861. A independência que conquistou na época foi um verdadeiro abalo nas expectativas que são depositadas em mulheres. Salomé foi uma intelectual ativa e uma filósofa que dialogava com Friedrich Nietszche (cujo livro Assim falou Zaratustra foi inspirado por ela), além de ser sido companheira e musa do poeta Rainer Maria Rilke.
Aos cinquenta anos, Salomé via seus problemas humanos, que ela examinara anteriormente através das lentes da filosofia, mais abordadas pela jovem ciência da psicologia, Andreas-Salomé tornou-se a primeira mulher psicanalista do mundo. No outono de 1911, participou do Congresso Psicanalítico de Weimar e fez amizade com Freud, com quem conhecera uma década e meia antes. A partir disso, Salomé se tornou sua musa, sua discípula e sua colega intelectual. “Estou esperando o dia em que eu tenha a oportunidade de ter uma conversa particular com você”, escreveu-lhe Freud pouco depois de se conhecerem.
O sonho foi consumado na produtiva correspondência que se seguiu, coletada em Sigmund Freud e Lou Andreas-Salomé: Cartas (disponível em inglês), onde os dois discutiram os papéis e pacientes um do outro, e trocaram opiniões sobre diversos assunto: do narcisismo à ansiedade e à masturbação, trocaram perspectivas sobre métodos de trabalho e discutiram sobre a psicologia do artista. Eles se abraçaram não apenas admirando a amizade – ela se dirigiu a ele por “Caro Professor” e ele agradeceu a ela pela “discussão pertinente e estimulante” – mas também pelo parentesco estabelecido por uma dedicação compartilhada às mais profundas preocupações humanas: amor, criatividade , espiritualidade, morte, o sentido da vida.
Por mais que a correspondência deles revele uma profunda mutualidade de valores e ideias, também evidencia alguns contrastes psicológicos significativos, dos quais os mais marcantes são as perspectivas divergentes sobre a natureza humana e as nuances dominantes do espírito humano. E que gatilho mais poderoso e pungente para contemplar essas questões do que testemunhar o pior da humanidade? Em uma de suas primeiras cartas a Andreas-Salomé, escrita à beira da Primeira Guerra Mundial, quando dois de seus filhos haviam entrado no exército, um pessimista Freud escreve:
Eu não tenho dúvida de que a humanidade vai sobreviver a essa guerra, mas também tenho certeza que, para mim e meus contemporâneos, o mundo nunca mais será um lugar feliz. É hediondo demais. E o mais triste quanto a isso é que é exatamente como nós esperávamos que as pessoas agiriam pela perspectiva da psicanálise. Por causa dessa atitude da humanidade eu nunca pude ser capaz de concordar com o seu otimismo alegre. Minha solução secreta sempre foi: como nós só podemos olhar a mais alta da civilização atual como carregada dessa enorme hipocrisia, concluímos que nós somos organicamente inadequados para ela. Nós temos que abdicar, e o Grande Desconhecido, Ele ou Isso, que se espreita pelo Destino, vai um dia repetir esse experimento com alguma outra raça.
Mas décadas depois, quando esse “experimento” foi de fato repetido em outra guerra mundial, as visões de Freud mudavam à medida que ele brigava com o assunto em sua correspondência pouco conhecida com Einstein – uma mudança talvez precipitada para o otimismo inflexível de Andreas-Salomé sobre o espírito humano. Em sua resposta a Freud, ela defende a dualidade inerente do bem e do mal em cada um de nós e a escolha que temos, como indivíduos e civilização, sobre a metade do que alimentamos – uma escolha que é essencialmente a divisão entre esperança e cinismo:
Em um momento isso concerne tanto a minha e a sua atitude diante do desespero do nosso tempo quanto o que você chamou do meu otimismo, que agora parece tristemente naufragado. E ainda eu acredito que por atrás de cada atividade humana individual, e do território que pode ser alcançado por meio da psicanálise, existe um abismo onde os impulsos mais valiosos e desagradáveis inextricavelmente condicionam-se mutuamente e tornam impossível qualquer julgamento definitivo. Essa mistura notável permanece um fato não apenas para o estágio outrora superado do desenvolvimento inicial (da raça e também do indivíduo), mas sempre uma nova, e para todos essa notável unidade é um fato – calculado para derrubar os arrogantes, mas também para exaltar os humildes de coração. É verdade de que isso pouco importa à nossa aversão ou deleite por uma peça da conduta humana, e um tempo como o presente pode consequentemente dar um golpe mortal na nossa felicidade e confiança; mas no entanto sabe-se que só se pode continuar vivendo com uma fé última, e o mesmo deve-se aplicar a todo mundo. Deve-se aplicar: mas é claro que não deve, não em dias como esses. Mas o fato de que se deve… só isso me ajuda um pouco.
Em outra cartas, Lou Salomé complementa:
O principal é que a fé na vida é essencialmente e vitalmente presente, por meio dela nós sobrevivemos.
Mas essas ideias sobre a natureza humana antecedem a incursão de Andreas-Salomé na psicanálise e se cristalizaram décadas antes, durante seus dias como poeta e filósofa. De fato, eles brilham mais intensamente em um poema de 1882 intitulado “Hino à vida”, que inspirou Nietzsche – seu amante na época – a transformá-lo em música. O sentimento em seu coração reverbera através de suas cartas a Freud muitos anos depois.
HINO À VIDA (tradução)
Tão certo quanto o amigo ama o amigo,
Também te amo, vida-enigma
Mesmo que em ti tenha exultado ou chorado,
mesmo que me tenhas dado prazer ou dor.
Eu te amo junto com teus pesares,
E mesmo que me devas destruir,
Desprender-me-ei de teus braços
Como o amigo se desprende do peito amigo.
Com toda força te abraço!
Deixa tuas chamas me inflamarem,
Deixa-me ainda no ardor da luta
Sondar mais fundo teu enigma.
Ser! Pensar milênios!
Fecha-me em teus braços:
Se já não tens felicidade a me dar
Muito bem: dai-me teu tormento.
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