Confira os 12 melhores poemas de Viviane Mosé

Viviane Mosé (1964) é natural do Espírito Santo e radicada no Rio de Janeiro desde 1992. Psicóloga, psicanalista, especialista em políticas públicas, mestra e doutora em Filosofia pela UFRJ. É professora e atua também como palestrante. Em 2005 e 2006, desenvolveu e apresentou temas de filosofia em uma linguagem cotidiana no quadro Ser ou Não ser, no Fantástico, da TV Globo e no canal Futura, em 2008. Foi comentarista da Rádio CBN durante seis anos. É autora de diversos livros de poesia, filosofia e educação. Teve duas indicações ao Prêmio Jabuti em 2002 e 2013, respectivamente, com os livros Stela do Patrocínio – Reino dos bichos e dos animais é o meu nome e A Escola e Os Desafios Contemporâneos. Faz parte do CEP 20.000 (Centro de Experimentações Poéticas), evento criado pelo poeta Chacal, no Rio de Janeiro, que reúne artistas e diversos poetas desde 1990 até os dias atuais. Estão entre os principais títulos de poesia da autora: Calor (2017), Frio (2017), Toda Palavra (2008), Pensamento chão (2007) e Desato (2006). Sua escrita poética é marcada pela intimidade com as palavras, apropriando-se de sentidos possíveis que descrevem, desnudam e transbordam.

O poeta Chacal explica a escrita poética de Viviane Mosé:

Viviane escreve com o quê? Com o pé, marcando o compasso que vem de uma antiga melodia, geratriz da poesia. Com o ouvido, tirando de cada palavra, todos os tons. Com a boca, soprando sobre a palavra, um sentido único. Com o ventre, gestando o verbo no profundo, antes de dá-lo à luz. Com a mão, moldando maneira, sua forma última no papel. Com o sexo, regando as frases com o melhor de seu mel. / Pouco importa. Viviane escreve como os raros. Sua prosa passa por Rosa. Seu verso é feito do mesmo barro de Manoel. Viviane vibra cada sílaba. Seu ritmo é fêmeo, sem ser afeminado. É doce, sem ser melado. É duro, sem ser porrada. Viviane se recusa ao óbvio, ao fácil, à rima besta de um acalanto. Sua melodia plena, vem mais da imbatível respiração daqueles que cantam como falam, que dizem como olham, simples e mágicos como seus personagens plantados no chão. Viviane tem um caso com as palavras. Na medida do impossível, um caso muito bem resolvido.

Confira alguns poemas selecionados:

Vida/tempo
quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na
pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina
sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma
(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)
acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim
e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás
um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos
acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

Receita pra lavar palavra suja
Mergulhar a palavra suja em água sanitária,
Depois de dois dias de molho, quarar ao sol do meio dia.
Algumas palavras quando alvejadas ao sol
adquirem consistência de certeza,
por exemplo a palavra vida.
Existem outras e a palavra amor é uma delas
que são muito encardidas e desgastadas pelo uso,
o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra,
depois enxaguar em água corrente.
São poucas as que ainda permanecem sujas
depois de submetidas a esses cuidados
mas existem aquelas.
Dizem que limão e sal tiram as manchas mais difíceis e nada.
Todas as tentativas de lavar a piedade foram sempre em vão.
Mas nunca vi palavra tão suja
como a palavra perda.
Perda e morte na medida em que são alvejadas,
soltam um líquido corrosivo
que atende pelo nome de amargura,
capaz de esvaziar o vigor da língua.
Nesse caso o aconselhado é mantê-las sempre de molho
em um amaciante de boa qualidade.
Agora se o que você quer
é somente aliviar as palavras do uso diário,
pode usar simplesmente sabão em pó e máquina de lavar.
O perigo aqui é misturar palavras que mancham
no contato umas com as outras.
A culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra
e deve ser sempre clareada sozinha.
Uma mistura pouco aconselhada é amizade e desejo,
já que desejo sendo uma palavra intensa, quase agressiva,
pode, o que não é inevitável,
esgarçar a força delicada da palavra amizade.
Já a palavra força cai bem em qualquer mistura.
Outro cuidado importante é não lavar demais as palavras
sob o risco de perderem o sentido.
A sujeirinha cotidiana quando não é excessiva
produz uma oleosidade que conserva a cor
e a intensidade dos sons.
Muito valioso na arte de lavar palavras
é saber reconhecer uma palavra limpa.
Para isso conviva com a palavra durante alguns dias.
Deixe que se misture em seus gestos
que passeie pelas expressões dos seus sentidos.
À noite, permita que se deite,
não a seu lado, mas sobre seu corpo.
Enquanto você dorme
a palavra plantada em sua carne
prolifera em toda sua possibilidade.
Se puder suportar a convivência
até não mais perceber a presença dela,
então você tem uma palavra limpa.
Uma palavra limpa é uma palavra possível.

Poemas presos
muitas doenças que as pessoas têm
são poemas presos
abscessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão
mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema
pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema
você pode arrancar poemas com pinças
buchas vegetais, óleos medicinais
com as pontas dos dedos, com as unhas
com banhos de imersão
com o pente, com uma agulha
com pomada basilicão
alicate de cutículas
massagens e hidratação
mas não use bisturi nunca
em caso de poemas difíceis use a dança
a dança é uma forma de amolecer os poemas
endurecidos do corpo
uma forma de soltá-los
das dobras dos dedos dos pés, das vértebras
dos punhos, das axilas, do quadril
são os poema cóccix, os poema virilha
os poema olho, os poema peito
os poema sexo, os poema cílio
ultimamente ando gostando de pensamento chão
pensamento chão é poema que nasce do pé
é poema de pé no chão
poema de pé no chão é poema de gente normal
gente simples
gente de espírito santo
eu venho do espírito santo
eu sou do espírito santo
traga a vitória do espírito santo
santo é um espírito capaz de operar milagres
sobre si mesmo

Mais vazio
Mais espaços em minha vida.
Mais horas a ver navios.
Mais relógios sem ponteiros.
Se pudesse pediria mais vazio.

Toda Palavra
Procuro uma palavra que me salve
Pode ser uma palavra verbo
Uma palavra vespa, uma palavra casta.
Pode ser uma palavra dura. Sem carinho.
Ou palavra muda,
molhada de suor no esforço da terra não lavrada.
Não ligo se ela vem suja, mal lavada.
Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada.
Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei
e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos.
Penso em quanta fadiga me dava
o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido.
Hoje imploro uma fala escrita,
não pode ser cantada.
Preciso de uma palavra letra
grifada grafia no papel.
Uma palavra como um porto
um mar um prado
um campo minado um contorno
carrossel cavalo pente quebrado véu
mariscos muralhas manivelas navalhas.
Eu preciso do escarcéu soletrado
Preciso daquilo que havia negado
E mesmo tendo medo de algumas palavras
preciso da palavra medo como preciso da palavra morte
que é uma palavra triste.
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida.
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.
Toda palavra é bem dita e bem vinda.

palavra suor é melhor do que palavra cravo
que é melhor do que palavra catarro
que é melhor do que palavra bílis
que é melhor do que palavra ferida
que é melhor do que palavra nódulo
que nem chega perto da palavra tumores internos
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema

Prosa Patética
Nunca fui de ter inveja, mas de uns tempos pra cá tenho tido.
As mãos dadas dos amantes tem me tirado o sono.
Ontem, desejei com toda força ser a moça do supermercado.
Aquela que fala do namorado com tanta ternura.
Mesmo das brigas ando tendo inveja.
Meu vizinho gritando com a mulher, na casa cheia de crianças,
Sempre querendo, querendo.
Me disseram que solidão é sina e é pra sempre.
Confesso que gosto do espaço que é ser sozinho.
Essa extensão, largura, páramo, planura, planície, região.
No entanto, a soma das horas acorda sempre a lembrança
Do hálito quente do outro. A voz, o viço.
Hoje andei como louca, quis gritar com a solidão,
Expulsar de mim essa Nossa Senhora ciumenta.
Madona sedenta de versos. Mas tive medo.
Medo de que ao sair levasse a imensidão onde me deito.
Ausência de espelhos que dissolve a falta, a fraqueza, a preguiça.
E me faz vento, pedra, desembocadura, abotoadura e silêncio.
Tive medo de perder o estado de verso e vácuo,
Onde tudo é grave e único. E me mantive quieta e muda.
E mais do que nunca tive inveja.
Invejei quem tem vida reta, quem não é poeta
Nem pensa essas coisas. Quem simplesmente ama e é amado.
E lê jornal domingo. Come pudim de leite e doce de abóbora.
A mulher que engravida porque gosta de criança.
Pra mim tudo encerra a gravidade prolixa das palavras: madrugada, mãe, Ônibus, olhos, desabrocham em camadas de sentido,
E ressoam como gongos ou sinos de igreja em meus ouvidos.
Escorro entre palavras, como quem navega um barco sem remo.
Um fluxo de líquidos. Um côncavo silêncio.
Clarice diz que sua função é cuidar do mundo.
E eu, que não sou Clarice nem nada, fui mal forjada,
Não tenho bons modos nem berço.
Que escrevo num tempo onde tudo já foi falado, cantado, escrito.
O que o silêncio pode me dizer que já não tenha sido dito?
Eu, cuja única função é lavar palavra suja,
Neste fim de século sem certezas?
Eu quero que a solidão me esqueça.

para uma nova gramática:
imagine um sentimento água. um sentimento árvore. uma agonia vidro.
uma emoção céu. uma espera pedra. um amor manga. um colorido vento sul.
um jeito casa de ser. uma forma líquida de pensar. uma vida paredes.
uma existência mar. uma solidão cordilheira. uma alegria pássaro em chuva fina.
uma perda corpo.

acho que hoje acordei semente. tenho andado muito temporal.
minha irmã vive um momento tudo. a vida às vezes transborda pelos poros.
me atinge um estado livro. aurora em meus joelhos. tem pessoas ponte.
algumas carregam a gravidade nas costas. Já conheci gente

lúcido deve ser parente de lúcifer
a faculdade de ver deve ser coisa do demônio

lucidez custa os olhos da cara

Rios
Rios, quando ainda são rios,
Conservam vegetação nas margens.
Córregos são águas geralmente claras
Que correm rasas entre as pedras.
Algumas vezes árvores chegam a cobrir um rio por inteiro:
Suas copas vão tecendo um véu verde sobre as águas
(em geral muito limpas) que correm.
As margens de um rio são plantas e terra molhada.
Terra e água em convivência pacífica.
Que não é lama, é terra e água,
Em sua diferença.
O leito se sabe leito daquele fluxo líquido inserido no chão.
Eu poderia chorar de coisas assim:
Corre um rio de minha boca corre um rio de minhas mãos.
Dos meus olhos corre um rio.
Na verdade sofro de excessos, que me dão certo vocabulário
Como derramar, escorrer, atravessar.
Tenho a impressão de que tudo vaza em sobras.
Tenho dificuldade em caber.
Pra caber mais derramo por nada derramo sem motivo.
Vou acalmar meu excesso pensei
Ministrando doses diárias de barcos ancorados ao sol,
Rodeados por pequenos pássaros em busca de restos de peixe.
Águas se lançando sobre as pedras e um vento que parece vivo,
Como se tivesse a intenção de às vezes fazer agrados
Em minha pele.
Meu rosto tem muita simpatia por ventos,
Reconhece certos humores próprios a vento.
Gosto de coisas que se movem.
Por isso aprecio rios e não sou tanto assim apegada a mares.
E árvores.
Se bem que tenho enorme ternura por bois
Fincados no pasto como palavras no papel.
Palavras são estacas fincadas ao chão.
Pedras onde piso nessa imensa que atravesso.

Um abraço no futuro
Escrevo
E experimento a sensação
De que um dia meu filho, já velho,
Lerá estas páginas sem saber
Que dormia em meu colo
Enquanto escrevo

Na tentativa de capturar
Este instante que foge
Agora escrevo, meu filho,
Somente para te mandar
Este abraço no futuro.

Um abraço apertado
Dizendo vai, segue adiante.
Viver é sempre o mais importante.

Palavras que me beijam a boca*
Não é travesseiro, mãe, é “cabeceiro” porque é o lugar onde a gente coloca a cabeça, Não é ferro de passar roupa é “passador”, não é cabide é “penduro”, eu dizia aos quatro anos. Aprendi a ler em casa, com meus irmãos, antes de entrar na escola. Nunca escrevi nada em minha vida sem a solenidade do silêncio que circunda cada palavra. Eu desde sempre me encantei por palavras. O universo dos signos sempre me pareceu sedutor e cheio de perigos. Escrevia versinhos e pensamentos. Juntava as letras como quem manipula o proibido, o inusitado. Aos oito anos, Dona Mirtes, professora de português, me disse que eu escrevia bem. Depois dali comecei a mostrar. Ganhava concursos de redação e era sempre quem lia em voz alta a oração do estudante. Depois vieram as cartas de amor que eu nunca mandava. E as que escrevia por encomenda para o namorado de alguma amiga. Minhas palavras fizeram alguns casamentos. Na universidade ganhei alguns trocados vendendo trabalhos de fim de semestre. Cheguei a fazer seis para a mesma professora. Aliado a estes pequenos ganhos, tive algumas desventuras. Arrastada pela dúvida a respeito do sentido das coisas e das palavras, sofria de angústia desde os oito anos de idade. Era como se a madrugada desautorizasse meu corpo e ele se ausentasse. Me sentia dissolvendo como algodão doce na boca. Era como se eu me tornasse palavra. Eu sou palavras de um lado pra outro, pensava, palavras nascendo, palavras em luta, palavras. Então escrevia, desde sempre escrevia, para fixar o que se volatizava, para conter, aprisionar o que se perdia. Sempre escrevi para não morrer. Então meus escritos de juventude eram densos, doloridos, sofridos, porque falavam de minha luta com a linguagem, minha paixão e meu pavor. Aos poucos o tempo, que se mostrou um grande aliado, foi me condensando, me contornando e aprendi a dormir. Aprendi a permanecer sem dor no nada. Aprendi a gostar do abismo constitutivo de onde emergem palavras. E descansei. Agora brinco com os sons e os signos, agora deixo as letrinhas se comporem como pequenos fluxos, pequenos rios. Agora lavo as mãos e as entrego a este jogo, a esta distração. Desde então as palavras passaram a beijar minha boca.
* Revista Poesia Sempre, ano 13, n.20

Fontes:
Antonio Miranda
Revista Trip
Templo Cultural Delfos
Usina Pensamento

 

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