Jorge Jesus e seus autores favoritos: Saramago, Fernando Pessoa e Camões. O que eles têm em comum?

Uma coisa que faço sempre questão de lembrar é que o amor aos livros é, antes de tudo, o amor por uma ideia de cultura. Uma tentativa, um esforço de ver nas artes, na estética e em toda produção cultural de um povo uma forma de se apresentar ao mundo e, assim, conseguir transformar parte dele em algo melhor. Uma das coisas que nós do NotaTerapia e eu, o editor Luiz Antonio Ribeiro, sempre gostamos de ressaltar é que o futebol também é uma dessas grandes manifestações artísticas do mundo. Mais que isso, provavelmente o futebol é a forma de arte que mais conecta pessoas ao redor do planeta e por isso deve ser analisado não apenas pela bola rolando, mas como um sintoma capaz de nos dar os tons de uma cidade, estado ou nação.

Uma figura que vem chamando atenção no futebol no Brasil nos últimos meses é o técnico português Jorge Jesus. De ímpeto e intensidade, mas também de grande capacidade analítica, em pouco tempo Jesus transformou o futebol reativo de Abel Braga em um futebol com tons de arte. O Flamengo, em campo, não tenta jogar bonito – tal como um belo quadro esteticamente perfeito – mas tenta jogar bem. E há uma diferença grande nisso: o futebol de Jesus não é uma arte clássica, mas uma arte moderna, que vê a obra como movimento, dinâmica, como transferência, como montagem de fragmentos que, no todo, compõe uma harmonia torta, difícil de capturar, mas potente.

Na entrevista coletiva da última partida contra o Grêmio, o técnico Jorge Jesus foi perguntado sobre ele ter se tornado a referência de um tipo de futebol que, talvez, advém da famosa seleção holandesa de 1974, a chamada Laranja Mecânica. Jesus, sem negar ou afirmar, disse que bebeu também daquela fonte. Ou seja, ele não nos dá a fórmula, mas uma peça de seu mosaico. Em seguida, é perguntado sobre os escritores portugueses, como se fosse ele próprio uma espécie de representante deste tipo de cultura portuguesa, alguém que faz na vida também uma espécie de obra. Lisonjeado, ele cita três autores: José Saramago, Fernando Pessoa, e Luís de Camões. E agora eu pergunto: Será que Jorge Jesus teria algo de semelhante com estes três escritores? Se sim, quais seriam essas características semelhantes? Vamos aqui, um pouco, tentar especular!


José Saramago

José Saramago é conhecido por gostar do embate de ideias. Ateu, comunista, via o mundo como uma dialética e buscava diante de si sempre apresentar outros lados para as faces do mundo. Os seus parágrafos longos não eram excessos, mas intromissões, exercícios de invasão de propriedade da própria narrativa para que ela não sofresse a tal catarse que tanto tentava evitar Brecht. Ele queria criticar o mundo, criticar a sua própria história e suas próprias palavras. O seu livro, no fim das contas, era um veículo de mediação entre o mundo e e si próprio, mas não só: ele era justamente o indício de que assim é o mundo: caos em que se busca ordem, ordem que, entrópica, leva ao caos. Ele é a ruína do mundo que, consertado, não precisaria mais de obras, nem de nada.

Jorge Jesus, como José Saramago, usa o ímpeto da palavra como sua ferramenta. E a dialética, um método de pensar o futebol: seu time é forte na defesa porque é forte no ataque e é forte no ataque porque está junto da defesa. Ele grita para dar beijinhos, como fez em Vitinho. E vai para o campo xingar um jogador após o jogo porque, ao sair do campo, aquilo não faz mais sentido. Além disso, como Saramago, é uma espécie de operário do esporte: veio de família pobre, não pretende ser um intelectual nem uma celebridade, como seu conterrâneo Mourinho. Jorge Jesus, como Saramago, é alguém que se irrita com o provincianismo e o conservadorismo e, por isso, sempre dá um passo maior que a perna. Às vezes vence, às vezes perde, como os verdadeiros heróis. Além disso, de Saramago tem também a vontade de brigar pela palavra: os conceitos são apenas ideias, as práticas são moldadas na língua. Não à toa o famoso “Tá mal, Arão!”
Jorge Jesus é, no fim das contas, também um invasor de seu próprio jogo, pois cria fissuras nele. Arma um jogo que pode ser desarmado a qualquer estante porque não pode se estabilizar: como vê o futebol como movimento aleatório do mundo, precisa estar sempre apto a invadir a si próprio e se rever. Dialéticos, ambos, Saramago e Jesus.



Fernando Pessoa

Fernando Pessoa é o escritor que se multiplica. E faz isso por um movimento duplo: se espalhar e se esconder. Estar em todo lugar e não estar em lugar nenhum. Esta é a característica principal dos heterônimos. Assim, há sempre de se desconfiar do que ele escreve, não porque não seja verdade, mas porque suas verdades mais apagam do que inscrevem.

Tal como Pessoa, Jesus tem como estilo de jogo aparentar ter apenas um estilo de jogo. No entanto, com um olhar mais atento, percebe-se que dentro deste esquema escondem-se – neste Pessoa-Flamengo – muitos esquemas. Ele esconde que o primeiro volante Arão está lá para sair com a bola ao lado dos zagueiros, mas também aparecer (embora menos) na área para cabecear. Ele esconde que tem um atacante, mas tem dois atacantes, mas de vez em quando não tem nenhum. E que seu lateral esquerdo fecha para o meio e que seu ponta joga muitas vezes enfiado. Não à toa, seu jogador preferido é um coringa, o Joker Gerson. Ah, e também o seu meia troca de posição com seu atacante e, muitas vezes está mais na área que ele (como acontece nas trocas entre Reinier ou Aarrascaeta e Gabigol). Jorge Jesus é Fernando Pessoa porque é Jorge Jesus, mas sabe ser Abel Braga, Mano Menezes e Felipão, enquanto estes são incapazes de serem um Jorge Jesus. A pergunta que fazemos a Pessoa – quem era Fernando Pessoa – pode ser feita a Jesus: quem realmente é o técnico Jorge Jesus? Em geral, temos adjetivos: a intensidade, a pressão. Substantivos? Poucos.

Luís de Camões

Este precisamos ir para o caso específico. A citação direta que fez Jorge Jesus a Camões (você pode ver no vídeo abaixo) é que ele não entende como um homem como Camões, após escrever uma epopeia como os Lusíadas, termina sua obra imensa e monumental com a palavra inveja. Veja o trecho final:

Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Tem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;

Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Digna empresa tomar de ser cantada,
Como a pres[s]aga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina,
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,

Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.

É evidente que Jorge Jesus queria alfinetar os técnicos brasileiros que tanto comentam de seu futebol tentando diminuí-lo. No entanto, o interessante em justapor Jesus à Camões é que o próprio sabia das críticas que receberia pelo trabalho que fez: “Da boca dos pequenos sei, contudo, Que o louvor sai às vezes acabado.” No entanto, se coloca em uma posição de humildade daqueles que sabem que fazem o que fazem simplesmente porque fazem (como o operário) e que não precisa muito explicar-se. Além disso, sabe que ao reescrever a história de Portugal, em tons de Virgílio, tomando a viagem de Vasco da Gama como tema, havia feito mais que outros e que, portanto, teria de entender que o novo como novo não será tão bem visto: “Tem me falta na vida honesto estudo, Com longa experiência misturado, Nem engenho, que aqui vereis presente, Cousas que juntas se acham raramente.” Como Jesus, muitos pontos na frente do vice colocado, disputando uma final, não precisa explicar porque fez o que fez: ele fez. Os outros que expliquem o porquê da inveja.

Sim. Jorge Jesus é, no Brasil, figura rara, mas que traz a literatura para contar sua própria trajetória. Como homem de cultura, mais do que um homem apenas do esporte, ensina-nos a olhar o mundo de forma diversa, por sinal, muito diversa de como treinadores brasileiros nos acostumaram. Que Saramago, Pessoa e Camões habitem mais o futebol nacional e que isto vire uma regra: assim, ao falar de futebol, sabemos que vamos sempre falar muito mais: vamos falar de literatura, de cultura e vamos entender, mais do que se foi gol ou não, o que se passa em um país.

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