Em 1985, o poeta e livreiro da geração beat Lawrence Ferlinghetti foi até a Nicarágua, país que tinha acabo de viver uma revolução, chamada “sandinista” – nome dado por conta do seu líder – contra a ditadura de Somoza para ver como funcionava o novo regime de lá. Segundo havia sido informado, o que tentavam fazer na Nicarágua era um governo de esquerda completamente diferente dos governos de Cuba e da URSS, com muito mais liberdade e menos repressão, censura e exército nas ruas.
Na abertura do livro, Ferlinghetti afirma que queria ir até lá para ver como era isso porque, principalmente por ser um homem da contracultura, da geração beat, e, em suas palavras, “como um libertário civil de tendência anarquista (…) estava interessado em descobrir até que ponto a “autoridade” é absolutamente necessária para tirar um país do colonialismo e construir uma sociedade livre” (p. 9).
Logo no começo, o que ele percebe é que está diante não de uma revolução, mas de “uma crise de descolonização de um país pobre com uma população do tamanho da que ocupa a área em torno da Baía de São Francisco, devastada por uma guerra financiada pelos Estados Unidos.” (p. 8).
Seu diagnóstico, um ano depois foi que “todos sonham com seu ideal de uma sociedade perfeita e ficam desapontados ou desiludidos”, afinal, “o absoluto é inacessível”. Mas aponta que, “corajosamente” a Nicarágua tenta “evitar os erros cometidos por Cuba”. E, por fim, se pergunta:
Quão libre poderá vir a ser a “Nicarágua Libre?”
O NotaTerapia separou as melhores frases da obra:
Vejo tudo isso como uma viagem de descoberta, na qual espero descobrir que os sandinistas estão certos e que posso fazer o público ficar a seu favor, em vez de manter o silêncio político de muitos escritores americanos de hoje.
Espero ter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto do cérebro cair fora.
[As mulheres] sentiram que na luta tinham adquirido direitos iguais ao homem, direitos pelos quais ela achava que as mulheres ainda estavam lutando nos Estados Unidos.
Temos um almoço marcado com Tomás Borge, ministro do Interior. Torturado durante anos nas prisões de Somoza, depois da vitória sandinista ele reconheceu um dos seus torturadores numa formação de prisioneiros, e ouviram-no dizer: “minha vingança é fazer você apertar minha mãe”.
Pode-se ver que ele gosta do contato com o povo, que age como um deles; e de fato é; chegou onde está de maneira mais difícil. Me chama de poeta sempre que tem chance de falar comigo, o que não é muito frequente. Ele diz poeta com uma mescla de respeito e realismo, como se não esperasse muito de mim.
Pareceria, então, nesta crise de descolonização, que o mais necessário é uma forma de governo que permita ao povo daqui dar-se conta de sua própria identidade e de sua própria liberdade civil e econômica. E o que é a identidade do povo da Nicarágua?
Por que há o dia e a noite?
A terra é redonda ou chata?
Por que vocês querem tanto ouro?
Os soldados cantam algumas consignas enquanto os deixamos para trás, sob a poeira. É a sua vida, seu futuro (Estarão no coração da realidade, ou estaremos nós?)
E, por fim, um sensacional poema que Ferlinghetti escreveu sobre aquilo que viu:
La Bruja: Flor da Revolução
Nos campos da fome
Nos lagos da sede
sob as montanhas da fome
sob os vulcões
Onde quer que nada exista
onde quer que não haja sinal de vegetação
como pássaros na cratera de um vulcão
como flores árticas que nunca murcham
na quietude das noites brancas
nas noites de coral negro
nas noites escuras da alma de todos nós
essas flores brujas
como mariposas em busca da luz
nas florestas nas matas nas praias
nas fronteiras e motanhas
na Sierra Maestra de nossa imaginação
nas casas nas ruas nas alamedas
nos escritórios dos ricos
nos restaurantes dos obesos e entediados
nos bares campesinos
nos seminários da mente
em igrejas cheias de papas mortos
E nas malocas das ruas sujas de Monimbó
brota essa flor imprudente
essa mágica flor roxa
essa corajosa flor bruja
brota reta para o alto
na luz de um novo dia
E brotará mesmo
dos canos das espingardas
dos canos dos canhões
quando finalmente as armas forem baixadas
e enterradas nos jardins
esta flor bruja tão corajosa, tão boba
flor curandera
flor da revolução
Ferlinghetti, 30 de janeiro de 1984