O Salto do Cavalo Cobridor, de Assis Brasil, uma imersão nos sertões do Piauí

Autor: Assis Brasil
Editora: Fundação Quixote
Edição: 2013
Ano: 1968
Páginas: 137

Há em literatura um deslocamento que perturba a ordem da escrita e daquilo que, em latência, ela traz como emergência. É interessante quando, ao ler uma obra em que se retratam figuras resultados e resultantes das desigualdades sociais e de classe em nossa sociedade, este deslocamento se dê ao revés de uma série de outras coisas. Pergunto: como retratar uma classe desfavorecida sem que, no momento da escrita, ela se torne protagonista, como se, de certa forma, a própria obra fosse capaz, de certa forma, de “dá voz a ela”, trazê-la ao proscênio da narração e fazê-la circular sendo observada por todos? Como pegar alguém que, dentro da sociedade, é visto às margens e retratá-lo em literatura ainda mas margens para que, mais do que se leia as vicissitudes que a personagem passa, se possa ler a própria situação da margem? Amplio a questão: Será que é possível desfazer a ideia de margem na prática quando, na literatura, prima-se por desfaze-la enquanto margem a todo o tempo, melhor dizendo, não seria no aprofundamento literário da ideia de margem que se escancararia tal situação, diante da escrita, como denúncia e potência transformadora? Parecem perguntas complexas para uma breve análise, mas é a partir deste ponto que quero ler mais uma obra de Assis Brasil.

Capa da primeira edição de O Salto do Cavalo Cobridor

O Salto do Cavalo Cobridor, de Assis Brasil, conta a história de Inação, um homem sertanejo do interior do Piauí, branco pobre e sacrificado pelo tempo, apesar de homem alto e forte “com olhos de alemão”. Inação, casado com sua esposa Zita, com quem havia tido e perdido um filho logo na primeira infância, cuida da Casa Grande de um casal rico da cidade. Ambos, de certa forma, são bem tratados pelos patrões, apesar da flagrante situação de exploração, dada a diferença de situação de vida entre as camadas sociais. Zita após a morte do filho entristecera e Inação passou a ter contato com diversas mulheres, como Josefa, a moça que ele encontrava nas linhas do trem, e Sulima, a bela e sensual cigana que amarra em seus encantos o pensamento e o corpo de Inação, levando-o ao cabo de si próprio. Ao lado de Inação e sua saga, temos a interessante figura de Matias, um grande contador de histórias que trabalha como caixeiro-viajante e, como uma espécie de Sherazade da obra, amplia cada pequena questão do sertão através de um outro conto, de uma outra história que se desdobra do interior da narrativa principal.




Inação é, como o próprio nome diz, uma figura deslocada de si, que, parece, não age por ações, mas pela composição de gestos que recusam as estruturas sociais conformadas. Assim, como um Bartleby, é levado pelo desejo, pelos impulsos do corpo e as mobilidades do espírito, ao mesmo tempo em que aspira, enquanto ser humano, ver-se como as classes superiores são vistas. Não age, mas busca o caminho da ação, é uma latência de inação, uma recusa.

Assis Brasil, escritor piauiense

Neste sentido, este homem que percorre esta vida, é, no fim das contas, um espectador de sua própria vida e tem nas personagens que o rodeiam os verdadeiros motores de sentido em sua trajetória. Matias, o contador de histórias, coloca a biografia de Inação na filiação de outras pessoas do sertão piauense, dando-a ela consciência política, ainda que de maneira simples, a partir de um possível imaginado por Assis Brasil. Josefa, a namorada dos trilhos do trem, leva Inação o deslocamento, o movimento do corpo que, diante dos trilhos, é obrigado a olhar para a terra, para as paisagens, para as fazendas de latifúndio e para as grilagens. Sulima, a cigana, lhe dá a dimensão de seu corpo, suas potências de desejo, seus abismos, desapegos ao mundo material, lhe dá desperdício, entropia, lhe cola a Nietzsche e Bataille, lhe empurram para o abismo do amor e da morte.

Por fim, Zita, sua companheira de vida, lhe da a dimensão da solidão, da passagem do tempo, das tristezas acumuladas e da vida que escapa, quase sem sentido através de nossos dedos. Zita, mulher protagonista-figurante deste livro, é de certa forma, aquela que sofre as inações de Inação e ao mesmo tempo acolhe em seu corpo as dores que o outro rejeita enquanto anda a esmo. Zita, no fim das contas, é a fogueira da obra, a memória e a história que precisamos contar. Ela dá o verdadeiro salto. A meu ver, é ela o verdadeiro cavalo cobridor.

O Salto do Cavalo Cobridor, escrita por Assis Brasil em 1968, junto de sua Tetralogia Piauiense, em que retrata as diversas faces do Piauí do século XX, traz, pela primeira vez, a face do interior e do sertão de seu estado. Se em Beira Rio, Beira Vida eram as margens do Parnaíba a serem retratados e se em A Filha do Meio Quilo era a cidade de Parnaíba a protagonista, agora, mergulhamos em um interior um tanto quanto silencioso, desconhecido, mas que pulsa em seus casos e histórias. O Salto do Cavalo Cobridor não é uma história que conta, mas que se deixa contar ao contar diversas histórias. É uma coletânea de vida, uma espécie de antologia de histórias, todas elas inseridas ao lado e no corpo destas duas figuras: Inação, uma força informe do corpo, e Zita, a força deformada do tempo.



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