A Filha do Meio-Quilo, de Assis Brasil, o corpo da mulher diante da cidade e da morte

Autor: Assis Brasil
Editora: Edições O Cruzeiro
Ano: 1966

Mas como pode escapar um morto? Como pode um morto escapar dos vivos? Eu, por mim, não sei como escapar. (Assis Brasil)

A questão da morte, enquanto mistério da vida na terra, é central no debate que se faz diante da existência do corpo e das palavras. A obra de Assis Brasil, principalmente a sua Tetralogia Piauiense (que inclui o romance Beira Rio, Beira Vida) e o Ciclo do Terror (com as mais famosas obras Os que Bebem os Cães e Aprendizado da Morte) tratam diretamente deste assunto: se é a morte a pauta da vida, o que seria da vida diante da morte? Esta pergunta, para Assis Brasil, também se desloca para o texto: o que fazer com o texto diante da morte da palavra? O que fazer com a palavra ou, então, como fazer com a palavra, diante da vida e da morte? Ao que me parece, Assis Brasil assume uma postura de não aderência, de não conformação com a vida – ou com a morte – mas, principalmente com a palavra, por isso se debate contra ela, numa postura quase contracultural, e se metamorfoseia, na tentativa profunda – aquela mais superficial, que só se encontra na pele – de encontrar um modo de viver diante da miséria humana, dos poderes escusos e da fragilidade e violências que só nosso mundo pode produzir.

A Filha do Meio-Quilo, de Assis Brasil, conta duas histórias ao mesmo tempo. A primeira é de Cota, sua personagem principal. A segunda é sobre a Parnaíba, cidade de Assis, de Cota e do livro, segundo sua vida no começo do século XX. Mulher de classe média, Cota havia sido acusada por toda a vida por ser uma pessoa que não seguia as regras e os padrões sociais, ou seja, por trabalhar, se envolver com homens e por ter uma vida sem se preocupar – e até em se vingar – da acusação dos outros. Cota, diante desta cidade do interior, diante de um rio e um cais do porto que empurra as pessoas da elite para o interior das cidades, revela-se capaz de enfrentar as acusações, entretanto, no fim da vida, precisa encarar a acusação de ter assassinado seu primeiro marido, Tomás. O livro, parte da Tetralogia Piauiense em que Assis Brasil gira em torno de sua cidade, a Parnaíba, também conta a história desta cidade, através da vida das pessoas que permeiam a personagem de Cota: se Cota é o centro, as demais figuras são beiras, tal como o litoral do rio Paraíba. Essas figuras são: Padre Gonçalo (o único presente nos quatro livros da tetralogia), Romualdo, seu segundo marido, Alzira e Lucília, suas duas enteadas, entre outros. Ao fim, um intenso relato de Cota a Padre Gonçalo revela a verdade sobre sua história e sobre seu passado: um verdadeiro retrato da miséria humana diante do destino e da morte e das convenções sociais sempre frágeis e cambiantes de nossa elite média tradicionalista nacional.

Perdão, Padre Gonçalo, se me transformei numa vingança viva, a gente cansa de não ser considerada, e cansa muito mais ainda quando não ser considerada é injustiça. Como refrear os sentimentos? (p.14)

Se em Beira Rio, Beira Vida, Assis Brasil se debruça sobre a vida de beira de uma geração de mulheres que se prostituem no cais do Parnaíba, em A Filha do Meio-Quilo, rasga a margem do rio e adentra o interior da cidade para, quase como um anotador da vida, fotografar as particularidades da vida média na cidade. O mais interessante é que, se na beira do rio a disputa era pela sobrevivência mais básica: o corpo estava diante da fome, do medo, quase como seres que não mereciam viver, neste caso, o que está em jogo é uma articulação de jogos de poder: primeiro, a o lugar da mulher diante de uma sociedade ainda patriarcal, depois as expectativas sociais que recaem sobre pessoas como um padre cuja vida é vistoriada pela sociedade a cada passo ou sobre uma mulher que, obrigada a casar se vê grávida de um filho que não quer e, por fim, sobre os grandes mistérios da vida: a força da morte diante das estruturas sociais.

A impressão que se tem, de certa maneira, é que Assis Brasil, ao denunciar a vida de Parnaíba estava em busca de uma intensidade da vida. Uma vida que só poderia se dar diante da morte, na medida que, uma vez no centro do poder seria apenas na desarticulação desse poder que isto poderia se dar. E isto, neste sentido, só poderia vir daquela cuja boca pode falar, cujo corpo é tão malucado pelas palavras que o gesto é sempre maior que a moral:

sinto, padre Gonçalo, que o senhor não devia estar ali, não devia ter carro, não devia ter uma casa de luxo, não devia batizar pelo preço que cobra para os grã-finos. Digo que não devia morar ali, ou poderia morar, mas com outras atitudes, com outra capa de apresentação; Você sabe que na Coroa os meninos não se batizam? (144)

Cota, então, atualiza em sua forma mulher, a personagem de Olga, do Ciclo do Terror, de Assis Brasil, do livro O Aprendizado da Morte, como também a figura de Ersília, de Pirandello em Vestir os Nus: trata-se de uma figura que, diante de sua nudez social, procura uma outra veste, uma roupa para poder viver e morrer. Isto, enquanto projeto político de um comum na arte, se dá através da metamorfose das palavras de Assis Brasil que, alterando a linguagem, alternando o foco narrativo e, inclusive, evitando diálogos que retratem conversas – optando por diálogos que apontam, quase parabólicos – busca evitar a hierarquia da forma para buscar uma força, uma intensidade que se articula não pelo que a página diz, mas pelo que ela enseja enquanto força. Ao fim, A Filha do Meio-Quilo diz tal como sua própria epígrafe, retirada de obra de Guimarães Rosa:

Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo côr-de-Rosa.

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