A importância do absurdo: porque tem sentido

Na década de 1920 o reconhecimento do inconsciente na arte resultou no aclamado movimento surrealista. Embora tentasse quebrar padrões, a forma de contar uma imagem ou história por inversos tratava de uma vontade já vista desde muito tempo, quando o homem percebeu-se completa e confusamente distinto de sua mente superficial. Traduzir o que seriam os sonhos, ou seja, a atividade mais forte que nos comete de tudo-o-que-não-é-a ponta-do-iceberg, para a arte não é algo fácil de fazer.

Pensam o contrário: coisas de surrealidade são aquelas nonsense em seu jeito mais bobo, tedioso e eliminável de discussões mais sérias. Perguntar o que significa uma obra surrealista é papel de desocupados. Perguntar a pessoas não-desocupadas significa uma resposta resoluta, como “é tudo o que não faz sentido”. Por um lado, essas pessoas estão meio erradas se supormos uma confusão com o dadaísmo, irmão quase-gêmeo, parecidos tal Hipnos e Tânato – erro fato, porém – o qual a prática é o que mais determina a arte; e por outro lado elas estão completamente erradas se supormos uma simples preguiça em sair do plano cotidiano para buscar sentido. O ato em si era para ser natural. Preguiça é a palavra mais apropriada, sim sim.

A primeira coisa que o surrealismo nos fascina é sua capacidade de comportar o absurdo. É a característica, ao alcance dos meus olhos baixos, mais forte que existe. Seja em quadros ou romances ou filmes, a cada segundo há uma brecha para mudar o real e assustar. Assustar porque nos é apresentado uma inversão, não que de fato nos dê sustos ao modo dos filmes de terror contemporâneos em primeira pessoa. Invertem o espaço, o tempo e personalidades do sujeito, permitindo variações identitárias ao modo de Macunaíma.

Se procurarmos uma explicação, voltamos ao latim do absurdo que é referente à fala dos surdos, ou seja, tudo aquilo ininteligível, algo tão incapaz de ser entendido que a pessoa deseja distância (ab sendo prefixo de distanciamento). Acontece que vemos a parte que não importa, surdos se entendem não pela fala, mas pelos gestos. Não digo de uma compreensão linguística moderna, língua de sinais, falo de tempos antigos. Desde sempre surdos se entenderam. Então nada mais justo que dizer: o absurdo seria dotado de sentido; este sentido apenas residiria noutro plano. É preciso saber para onde olhar.

E poderíamos dizer isso de qualquer história que envolvesse o não-real? Embora o fantástico vá exigir do consumidor significações mais trabalhadas, o que acontece na estética surrealista vai para o plano formal, e não só conteudístico. Como assim? É que além do surrealismo contar uma história e não dar explicações, os fatos se dão por uma estrutura narrativa que não estamos acostumados. Nem mesmo estamos acostumados com surpresas, quem dirá de sustos narrativos. “Aquilo” aconteceu do jeito que as coisas acontecem em um sonho, que só não há explicações porque você as pensa acordado, e a ordem pouco importa para que você não fique confuso naquele estado. Seus sonhos fazem sentido enquanto sonhos, sem o menor esforço. Trazer para o mundo acordado é uma tarefa árdua, mas que histórias surrealistas têm o trabalho de fazer.

Como disse, desde muito tempo houve essa vontade de mudar no cinema, não apenas um jeito de narrar específico ou tratar de sonhos na arte. É a simples vontade de mudar. No filme O sangue de um poeta existe esse ato de quebrar antigas estátuas e — uma pena — tornar-se estátua. E esperar que outros venham e nos quebrem. É preciso estar em movimento, numa animação constante, e o cinema (bem como a literatura) começaram quebrando antigas formas de contar histórias, e para isso precisaram de “explicadores”, como bem disse Carrière em A Linguagem Secreta do Cinema, para apontar coisas na tela e dizer “É isso que está acontecendo, pessoal… Não, pela décima vez, o trem não está vindo de verdade!”. Precisaram assustar pessoas com aranhas e esqueletos nos espetáculos precursores do cinema, atrações de fumaça e espelhos, e precisaram dar baldinhos de vômito quando aparecia alguma víscera. Tudo isso assusta, tudo isso é ou foi um absurdo.

Precisávamos talvez de mais medos para a arte, para nos manter imersos nas histórias, não só aquelas do papel ou da tela, mas aquelas que nos contam no dia-a-dia, aquelas que ouvimos da avó antes de dormir ou que entreouvimos na fila do supermercado. Precisávamos também contar mais nossos sonhos e encontrar um significado qualquer, mas único, para dizer que isso tudo é um quebra-cabeça irrefutável da vida, e assim nos constituir como gente através das significações que atribuímos a tudo – e isso não nos diminui.

A linguagem foi concedida ao homem para fazer dela um uso surrealista.

– André Breton, 1924


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