Com a palavra: Hilda Hilst

Poeta, ficcionista e dramaturga brasileira, Hilda Hilst (1930-2004) teve mais de 40 obras escritas e traduzidas para diversos países. Para conhecer a trajetória da autora, disponibilizamos outra matéria no site Notaterapia. Por muito tempo, a crítica permaneceu em silêncio e o público demonstrava pouco interesse, o que gerou uma frustração quanto à recepção de sua obra. Durante a maior parte da vida, lamentava-se que não era compreendida e que seus livros não eram lidos.
A obra Fico besta quando me entendem, lançada em 2013, pela Editora Globo e organizada por Cristiano Diniz, reúne várias entrevistas de Hilda Hilst, entre os anos 1953 a 2003. Nas entrevistas, ela relata questões pertinentes sobre a sua produção literária e, também, revela fatos e sentimentos marcantes. Como, por exemplo, a paixão, o convívio com cães, o divino, a morte e a relação com a família. Dessa forma, é possível conhecer um pouco mais da vida da autora considerada intensa e irreverente.

Confira as melhores citações da escritora:

Paixão
Estou convencida de que o amor é a única coisa a se viver. Minha infraestrutura é completamente amorosa. Eu queria viver sempre na paixão. Isso pode custar anos de vida, esse “viver” unicamente em função da paixão… Assim como uma corda esticada prestes a se romper… Enquanto a vida cotidiana, a vida doméstica, é uma coisa insuportável… Acho que só essa tensão, essa paixão, justifica o tempo que passamos a viver, e eu daria com muito prazer anos da minha vida para só conhecer esse estado… Mesmo que seja muito difícil de suportar, porque se acaba morrendo por isso, deixa-se a vida aí… E isso quase aconteceu comigo.
É um pouco estranho, mas para mim existe um limite para a duração desse encantamento apaixonado. Um ano e três meses, acho que foi o máximo que conheci. E é terrível, porque, de repente – isso acontece de repente, de modo brusco –, eu não sinto mais nada… O encantamento acaba. O que o corpo procura é o encontro, essa descoberta inicial, esse olhar inaugural, o primeiro toque, a primeira carícia… E o que vem depois disso não passa de performances que, para mim, são um pouco tristes. Nunca mais vai ser a primeira, a segunda vez. O que eu sempre procurei foi esse encantamento: encher meus olhos com um rosto e pensar: meu Deus, nessa cabeça existem pensamentos que eu não conheço. Essa cabeça pensa de um modo desconhecido para mim. Isso não significa que eu espere que a pessoa me explique a física quântica… Não sou idiota a esse ponto. Mas que pelo menos esse olhar me comunique uma dimensão que eu ainda não conheço.

Eu adoraria estar apaixonada sempre. A minha mãe dizia uma frase que eu nunca esqueci: “Tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão”. Eu não entendia o que ela queria dizer, mas agora eu entendo. A paixão é uma doença mesmo, uma doença total. E eu gostaria de, velha, ter uma paixão, de me apaixonar.

Casamento
Acho abominável a situação de ter um marido. Não tenho nada que se pareça com um marido. Amantes, sim, eu tenho. Posso muito bem considerar ter paixões loucas, até mesmo desprezíveis, mas o casamento é algo sinistro. Eu disse para esse homem com quem me casei: “Senhor, isso vai ser péssimo. Você vai querer dormir comigo todos os dias criados por Deus, e estou te avisando, comigo isso não dura… […] Mas é terrível, porque a partir do momento em que o encantamento acaba, eu não suporto mais nada, nem que se aproximem de mim, nem mesmo que me olhem… O corpo morre, ele está morto diante do outro corpo, ele não está mais habitado. Isso pode parecer absurdo, mas eu encontrei corpos desabitados… Eu sei, certamente eu tenho um problema… Acho que o medo de ser abandonada… Então eu abandono primeiro. E os homens não entendem.

Deus
Deus é quase sempre essa noite escura, infinita. Mas ele pode ser também um flamejante sorvete de cerejas. É uma escuridão absoluta, mas de repente te vem uma volúpia doce lá dentro. Como se fosse esse sorvete de cerejas. Te vem o gosto de um divino que você não sabe nomear.

Cães
No fundo eu tenho a impressão de que eu mesma, como eles, me sinto desamparada diante desse turbilhão dentro e fora de mim, que não se resolve. E o cão representa muito bem esse desamparo. Me identifico muito com a figura da vítima, do animal vítima. Me identifico com cavalos nas carroças, fico muito emocionada quando os vejo ali, sozinhos, presos. Acho que o homem habita esse mistério, e não consegue explicar esse mistério do desamparo que o cão simboliza de forma exata.

Morte
O meu interesse mesmo era com o problema da morte. Porque eu acho terrível a desagregação disso que nós somos, pensamos, amamos – enfim, alguém que formulou pensamentos, que teve aventuras, emoções, e de repente apodrece, caralho, com milhões de vermes te comendo, e tchau. Nunca me conformei com isso. De repente as coisas terminam? Tô vendo o pássaro, to vendo o cachorro, tô vendo eu mesma – e acaba? Como é que é não ser?

Família
Eu tive uma infância muito feliz, guardo uma excelente lembrança dela. Minha mãe era extraordinária e por muito tempo foi uma mulher maravilhosa. Passei oito anos morando em uma pensão, porque ela e meu pai viviam cada um de um lado, e foi a partir da minha adolescência, digamos, mais ou menos entre dezessete e dezoito anos, que as coisas ficaram complicadas pra mim. Meu pai era esquizofrênico, paranoico, e criei toda uma construção, uma espécie de magia em torno dele. A figura paterna foi de grande importância pra mim, e eu posso dizer até que ela foi de uma importância fundamental, a começar pelo que as pessoas ao meu redor falavam sobre ele. Ele era muito bonito. Parece que minha mãe e ele se amaram loucamente, mas eu vivi em meio a horríveis dramas familiares. A mãe do meu pai fazia parte de uma família grande e muito tradicional, ao contrário da minha mãe, e isso foi motivo para um conflito horroroso: ela nunca concordou que meus pais se casassem. Pior: ela teria preferido ver minha mãe morta, pois eles moravam juntos sem que tivessem se casado.

 

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