Maria Teresa Horta é jornalista, escritora e poetisa portuguesa. Estudou Letras na Universidade de Lisboa e, no final de 1950, foi a primeira mulher a exercer funções dirigentes no cineclubismo em Portugal. Fez parte do Grupo Poesia 61 e publicou vários textos em jornais. Nos anos 60, tem sua estreia literária com o livro de poemas Espelho inicial. Participou do Movimento Feminista de Portugal junto com outras escritoras Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. As Três Marias, como foram denominadas, lançaram o livro Novas Cartas Portuguesas (1972), que causou polêmica na época, resultando em um processo judicial pela natureza transgressora em relação aos valores morais e à tradição patriarcal. Entre suas premiações mais recentes, destacam-se as obras Poesia reunida (2009) e As Luzes de Leonor (2011). Considerada uma das vozes do feminismo português e símbolo de luta contra o salazarismo, atuou contra a repressão sexual e a discriminação. Além da temática amorosa, também aborda o desejo erótico, a sexualidade e o prazer feminino. Este ano é uma das convidadas na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
Conheça alguns poemas:
Corpo inteiro
Para mim o
amor
fica-me justo
Eu só visto
a paixão
de corpo inteiro
Intervalo
No silêncio que guardo
quando partes
que escondes sob os
dedos
que se prende
que me deixa no corpo
este calor
da falta do teu corpo como sempre
As nossas madrugadas
Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito
pois suspeitas
que com ele me visto e me
defendo
É raiva
então ciúme
a tua boca
é dor e não
queixume
a tua espada
é rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas
E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que meu ventre
se trespasse
E queres-me de amor
e dás-me o tempo
a trégua
a entrega
e o disfarce
E lembras os meus ombros docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sente
e possuíres de mim o que não sabes
Desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo
E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales.
Corpo
Sou voraz
não me apego
ao abrigo da alma
Sou o corpo
o incêndio
só o fogo
me acalma
Desobediência
Sou feita de muitos
nós
desobediência e meio- dia
Sou aquela que negou
aquilo
que os outros queriam
Disse não à minha sina
de destino preparado
recusei as ordens escusas
preferi a liberdade
e vivo deste meu lado
Minha Senhora de Mim
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
recusando o que é desfeito
no interior do meu peito
Propósito
O desejo revolvido
A chama arrebatada
O prazer entreaberto
O delírio da palavra
Dou voz liberta aos sentidos
Tiro vendas, ponho o grito
Escrevo o corpo, mostro o gosto
Dou a ver o infinito
Os silêncios
Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo
Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo que não
digo
Se te calas
eu ouço e eu invento
Se tu foges
eu sei não te persigo
Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo
Poema Sobre a Recusa
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda
Resistência
Ninguém me castra a poesia
se debruça e me põe vendas
censura aquilo que escrevo
nem me assombra os poemas
Ninguém me paga os versos
nem amordaça as palavras
na invenção de voar
por entre o sonho e as letras
Ninguém me cala na sombra
deitando fogo aos meus livros
me ameaça no medo
ou me destrói e algema
Ninguém me aquieta a escrita
na criação de si mesma
nem assassina a musa
que dentro de mim se inventa
Vício
Vou vivendo na vontade
que tenho de me atirar
no incêndio dos teus braços
a procurar no final
voltar de novo ao início
entre a poesia e o voar
pois escrever e amar
é arder
no mesmo vício
Cantiga sobre o lamento
Lamento: minha cantiga
meu fato-veludo
Lamento: minha amizade
minha trevas
e deserto
meu enfeite de saudade
meu disfarce
de ilusão
Lamento: meu ornamento
minha casa em construção
Paixão
Com a paixão faço
e armo
a construir-me no excesso
Apunhalo o coração
enveneno
o peito aberto
A paixão é meu
destino
meu final e meu começo
Morrer de amor
e de amar
é a morte que eu mereço
Retrato
Tinha uma silhueta
esbelta e quebradiça
O desassossego
no espelho das palavras
Olhos de anil
a boca indefinível
Andar audaz de culpa recusada
Tinha um trejeito
de pressa leve e esguia
Odes, sonetos
sonhos, verso e lava
Tinha paixões
que sempre rasurava
Minha saudade
Minha saudade
corpo de beber
meu corpo- vidro
tão desenganado
à transparência só sei
de sofrer
planta que trato
com tanto cuidado
Minha saudade
minhas ancas breves
na cama certa
tão anoitecida
desperta a causa
e desperta a língua
a procurar o meu prazer
na ferida
Sem vassalagem
Nada mais de mim
haverá memória
-sei-
só os poemas darão conta
da minha avidez
da minha passagem
Da minha limpidez
sem vassalagem
Ponto de honra
Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço
Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino
Contrário o meu destino
digo oposto do que ouço
Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho
Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto
Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato
Escrevo
e cuspo na fogueira
Pequena cantiga à mulher
Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza
Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
Nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga
Tapa a nudez
Com as mãos
Procura o pão
Na gaveta
Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca
Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada
Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa
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