“O Filho de Mil Homens”, de Valter Hugo Mãe: um livro sobre o afeto em um mundo cada vez mais deserto

Autor: Valter Hugo Mãe
Editora: Globo Livros, 2016
Páginas: 224
Foto de capa: Universo dos Leitores

Tudo era antes do silêncio. Tudo era pressa e urgência.
Valter Hugo Mãe

A vida, muitas vezes, se apresenta como um deserto. Na verdade, se formos a fundo, a vida é tal qual um deserto: um espaço árido em que uma série de forças de diversos lados empurram-nos e nos levam por entre percalços e dunas que não podemos perceber. Quando vemos, estamos ao fim da vida e ainda em meio ao deserto. No entanto, cada deserto reserva para si um oásis. E é desse oásis que muitos escritores fazem suas obras. Valter Hugo Mãe, do deserto da vida, arromba uma porta e nos compõe um oásis em O Filho de Mil Homens.

O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe, conta a história de Crisóstomo, um homem de meia idade e solitário – habitante de uma espécie de terra-praia-deserto, uma cidade pequena sem perspectivas – que sonha em ter como companhia para a vida um filho e, por fim, uma esposa. Um dia ele resolve pedir ao mundo, com todo coração, que realize seus desejos e assim se faz. Ao lado de Camilo e Isaura, Crisóstomo descobre o que é o amor de pai e o amor de homem, ao mesmo tempo em que nos faz conhecer uma série de personagens e figuras desta vila a beira mar: uma anã que era constantemente estuprada, um homossexual que sofre a rejeição da mãe e da sociedade, um senhor solitário que quer uma esposa apenas para cuidar de si, entre outros.

O Filho de Mil Homens escapa do deserto porque, desde o título, já nos sugere um acolhimento, uma possibilidade de aproximação incondicional em relação ao outro. Ser filho de mil homens significa, nas palavras do autor:

Todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.

Assim, Hugo Mãe inverte a lógica de nossa vida ao transformar as ações de Crisóstomo em gestos. Muitas vezes, a possibilidade de se sentar ao sofá ao lado de alguém e poder passar a tarde, em frente a uma mesa de lanche, falando da vida e vendo o horizonte é mais do que qualquer outra pessoa naquele espaço poderia fazer por alguém. É pouco, mas salva. Inundados por uma espécie de “consciência religiosa e coletiva”, as demais personagens precisam, mais do que agir, reagir às forças do mundo. Assim, impõe-se sempre em gestos de forças que impedem qualquer tipo de passagem de afeto, enquanto que para Crisóstomo, criado na solidão, uma companhia qualquer já é capaz de inverter esta lógica.

Assim, o amor passa a ser:

O amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa.

Se há um problema no livro é que, de certa forma, as personagens são deterministas ou quase positivistas. Não há mudanças nas atitudes ou sequer uma dúvida no caráter. Divididas entre “bem e mal” a lição parece dada logo de cara, o que coloca um autor em um lugar privilegiado, quase como um deus ex machina, em que não vemos um tempo que passa, apenas uma lição de vida. Bela, porém ainda lição.

O Filho de Mil Homens é um livro sobre o afeto humano quando alguma coisa na ordem da sociedade parece ter dado errado. É um gesto de gentileza e um exemplo de cuidado. É quase uma esperança. Pena que somos tão desconfiados.

Confira as melhores frases da obra:
https://jornalnota.com.br/2016/09/22/as-15-melhores-frases-de-o-filho-de-mil-homens-de-valter-hugo-mae/

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