Editora: Companhia das Letras, 2016
Tradução: José Rubens Siqueira
Páginas: 144
O coração do homem é uma floresta escura.
Coetzee
O principal momento de concretização de um autor dentro do que chamamos de “meio literário” se dá quando ele é capaz de, olhando para a história da literatura, encontrar um ponto onde se ancorar e, por ali, mergulhar pelas águas sombrias dos oceanos das palavras. Isto significa, de certa forma, encontrar algo ou alguém que, mesmo já tendo escrito, falou e fala por nós e que, justamente por isso, pode também ser dito através de nossas palavras. Coetzee, em Foe, encontrou seu eco, sua voz em Daniel Defoe e, ao recontar a história de Crusoé, também contou sua própria.
Foe é uma das principais obras do autor Sul-africano J. M. Coetzee. Lançada primeiramente em 1986, ela reconta a história de Robinson Crusoé, através da figura da náufraga Susan Barton. Susan sobrevive de um motim em um navio e se vê na mesma ilha de Cruso, um homem irascível e de poucas palavras, e seu fiel escudeiro Sexta-Feira. A obra, uma verdadeira reinvenção narrativa de Coetzee é, no fundo, uma grande conversa sobre as possibilidade de se montar e remontar a linguagem para se contar uma “história”. A própria figura de Foe, no caso, Daniel Defoe, aparece como alguém que recebe a história de Barton para conta-la e, no fim, ambos se encontram em um beco entre vida, arte e linguagem. O resultado é uma obra irretocável, de beleza singela, mas potente.
O mais interessante da obra está no fato de que, a história da ilha, ou seja, os mistérios criados por Defoe do homem Crusoé, sua sobrevivência, sua solidão e seu encontro com sexta-feira, para Coetzee são apenas um mote de narração. Ao pensar como contaria tal história, ele se vê diante da história entre o fato, o narrado e o verossímil. Sua personagem, Susan, ao pensar sua vida a partir daquilo que realmente aconteceu, perde a dimensão de que o narrado e também daquilo que se vive, passando apenas a se ver como aquela que, ao ser resgatada e voltar para a cidade, deveria “contar”, deixando a vida de lado.
Quando penso em minha história, pareço existir apenas como aquela que veio, aquela que testemunhou, aquela que ansiava por ir embora: um ser sem substância, um fantasma ao lado do corpo verdadeiro de Cruso. É essa a sina de todo contador de histórias?
Assim, ela se coloca no jogo duplo de – não ter vivido lá – e não viver aqui. É aí que o próprio Foe, no caso, o autor a quem ela pede para contar a história da ilha, parece desprezar sua própria história: ele não quer falar da ilha, mas do que em Susan ecoa na ilha ou, até, naquilo que, uma vez morto na ilha para Susan, só poderia vir a tona agora, quando não se está mais lá. No entanto, como diz o próprio Cruso:
O mundo está cheio de ilhas, Cruso disse uma vez.
Sexta-Feira, neste caso, é a materialidade da ilha. Fora dela, se torna “aquele que sobra”, um homem sem utilidade (e por isso potente) e alguém que, sem o poder da linguagem, se torna o enigma da ilha para Susan. É nele que habita o real que poderia se narrado, ou seja, quando a linguagem some, sobra a materialidade do real, enquanto que o real narrado é real apenas como matéria-palavra: arte, poesia. Ele é o próprio Narrado, ou uma utopia da narração:
Sexta-feira não tem nenhum domínio sobre palavras e, portanto, nenhuma defesa contra ser remodelado dia a dia em conformidade com o desejo dos outros. Digo que ele é um canibal e ele se torna um canibal; digo que é um lavador de roupas e ele se torna um lavador de roupas. Qual a verdade de Sexta-feira? (…) Ele é o filho de seu silêncio, um filho não nascido, uma criança esperando para nascer que não pode nascer.
Ao fim, J. M. Coetzee fará um tratado sobre a palavra, sobre a liberdade e sobra a escrita. Foe, até agora, é a melhor leitura de 2016. Uma das obras mais importantes do século XX e que trouxe a literatura africana para a cena. No mais, temos apenas a fugacidade da letra na presença dos corpos, como afirma o autor:
Este não é um lugar para palavras. Cada sílaba, assim que escapa, é capturada, preenchida com água e dispersa. Este é um lugar onde corpos são seus próprios sinais.