Contar histórias é um forte do nosso povo. Adoramos nos reunir em volta de uma mesa, no quintal, na porta de casa ou de um bar e contar aquilo que sentimos, vivemos e presenciamos. É claro que, para a história não ficar insossa demais, damos um retoque aqui e outro ali, nada que faça tudo virar uma grande mentira, mas somente para dar um pouco de emoção àquilo que se conta. Narrar, desde que as narrativas se incorporaram aos homens, tem sido um hábito duplo de propagar e preservar memória. Quando se conta, se relembra, e ao relembrar cria-se um laço afetivo entre o eu que conta e o outro que ouve: agora, os dois compartilham essa história e, por isso, são ambos responsáveis por ela.
No Brasil, nem a fome e a pobreza são capazes de silenciar a voz de nosso povo. A criatividade, o mundo mágico e uma rara capacidade de reinventar o cotidiano, faz do brasileiro um imenso manancial de escritas. Foi isso que percebeu Ariano Suassuna, ao escrever a famosa peça O Auto da Compadecida. Inspirada nas obras da cultura popular, com bastante influência do cordel e dos autos de Gil Vicente, Ariano criou esses dois parceiros Chicó e João Grilo, que para sobreviver à fome e à miséria acabam tornando o ato de contar histórias e enganar os outros um hábito, uma necessidade. No entanto, o talento de ficção de Chicó é um tanto quanto peculiar. Ele inventa histórias impossíveis de cavalo bento, de pirarucu que é seu dono, de papagaio que morre de velhice ainda novo.
Veja aqui:
Será Chicó o protagonista de o Auto da Compadecida?
Confira algumas das histórias de Chicó contidas na adaptação cinematográfica da obra:
1- A história das Pacas
Chicó conta que viu um monte de pacas atravessando o rio, tantas, mas tantas que chegava a inclinar a água. Morto de fome, ele resolve matar pelo menos uma para comer. Assim que dispara a arma, percebe que todas elas são do Major Antônio Moraes. Para remediar o tiro, coloca a mão na frente da arma e impede a saída da bala. Como? “Não sei, só sei que foi assim.”
2- O cavalo Bento
Dessa vez, ao falar do cachorro bento, ele diz que já teve um cavalo bento que o guiou durante 17 horas atrás de uma garrota e de um boi sem ao menos reclamar. E mais, o cavalo foi da Paraíba até o Sergipe e atravessou o Rio São Francisco! Como? É porque era bento. Mas como? “Não sei, só sei que foi assim.”
3- A História do Pirarucu
Chicó teve um pirarucu, ou melhor, um pirarucu teve ele: Chicó enrola uma corda ao redor de seus braços e amarra um arpão nela. Consegue pegar o peixe que puxa o rapaz para a água. É arrastado três dias e três noites rio acima. Com o braço amarrado, ele consegue acenar para que as pessoas retirem-no da água. De que jeito? “Não sei, só sei que foi assim.”
4- A Assombração do Cachorro
Chicó andava pela beira de um rio quando deixa uma moeda de 10 tostões cair no chão. Seu cachorro fica observando e começa a cochichar com alguma coisa ao seu lado, de repente, mergulha no rio e traz a moeda de volta. Quando Chicó vai olhar: só tem alguns cruzeiros. A alma do cachorro do além tem moeda trocada? “Não sei, só sei que foi assim.”
5- O Papagaio Padre
Um papagaio sabido e esperto que lia a Bíblia junto com Chicó. Aos poucos, de tanto ler, aprendeu os sacramentos e na falta de um padre fazia os serviços da comunidade. Bicho inteligente, de sentimento nobre, pena que morreu de velhice. Mas como, se Chicó viu o papagaio nascer e eles vivem mais do que gente? “Não sei, só sei que foi assim.”
Para ver o vídeo com as histórias de Chicó, basta conferir aqui: