“Se tivesse de nascer outra vez escolheria algo totalmente diferente. Gostaria de ser norueguês. Talvez persa. Uruguaio não, porque seria como mudar de bairro.”
Jorge Luis Borges
O Vendedor de Passados conta a história de Félix Ventura (seria ele uma “feliz sorte?”), um negro albino, nascido em Luanda, que tem como profissão inventar passados para as pessoas. Em um desses casos, um senhor procura-o querendo que o trabalho seja feito e Félix cria para ele uma persona chamada José Buchmann, nascido em uma província que tinha uma mãe jornalista e pintora. José vai em busca de suas “falsas raízes”, mas encontra muito mais que isso: encontra seu próprio passado. Para apontar o toque de animalidade, ou seja, de vida anterior ao homem presente em toda obra, Agualusa coloca como narrador, ouvinte e companheiro de Félix, uma lagartixa (ou osga, como se diz por lá), animal sensato e reflexivo, que já havia sido humano, que acompanha toda trajetória entre os funcionários de Ventura. Leia mais AQUI!
O NotaTerapia selecionou as melhores frases da obra. Confira:
Ele vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo. Os empresários, os ministros, gostariam de ter como tias aquelas senhoras, prosseguiu, apontando os retratos nas paredes – velhas donas de panos, legítimos bessanganas -, gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de Assis, de um Cruz e Souza, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse sonho singelo.
– É uma osga (lagartixa), sim, mas de uma espécie muito rara. Está a ver estas listras? Trata-se de uma orga-tigre, ou osga tigrada, um animal tímido, ainda pouco estudado. Os primeiros exemplares foram descobertos há meia dúzia de anos na Namíbia. Acredita-se que possam viver duas décadas, talvez mais. O riso impressiona. Não lhe parece um riso humano?
-Costumo pensar nesta casa como sendo um barco. Um velho navio a vapor cortando a custo a lama pesada de um rio. A floresta imensa. A noite em volta. – Félix disse isso e baixou a voz. Apontou num gesto vago os vagos livros: – Está cheio de vozes, o meu barco.
Recordo sem prazer, sem dor também, o meu nome humano. Não lhe sinto a falta. Não era eu.
Eu coleciono luz.
Você inventou-o, a esse estranho José Buchmann, e ele agora começou a inventar a si próprio. A mim parece-me uma metamorfose… Uma reencarnação. Ou antes: uma possessão.
Eu conheço o duplo. Contratei-o! Contratei outros também. O velho nunca aparecia em público. Eram os duplos dele quem apareciam. Aquele, o Três, foi sempre o melhor. O único que podia falar sem levantar suspeitas, os outros ficavam em silêncio, só os utilizávamos em cerimónias de corpo presente. O Três era um caso especial, um talento raro, um verdadeiro actor, assisti à formação dele. Levou-me cinco meses. Aprendeu rápido. Como se mover, como se dirigir às pessoas, o tom de voz, o protocolo.
Luanda está cheia de pessoas que parecem muito lúcidas, mas de repente desatam a falar línguas impossíveis, ou a chorar sem motivo aparente, ou a rir, ou a praguejar. Algumas fazem tudo isto ao mesmo tempo. Umas julgam que estão mortas. Outras estão mesmo mortas e ainda ninguém teve coragem de as informar. Umas acreditam que podem voar. Outras acreditam tanto nisso que realmente voam.
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